Folha de S. Paulo


Governo quer dar um 'cala boca' naqueles que acusam sua ilegitimidade

No mesmo momento em que assistia à transmissão da Globonews sobre a ação heroica do batalhão de choque da polícia controlando vândalos arruaceiros que depredaram lojas e agências bancárias na noite do impeachment, encontrava posts e mais posts no Facebook de cenas em que uma multidão pacífica de pessoas, descendo a rua da Consolação, era encurralada e atingida de surpresa por bombas, gerando pânico e correria, que por pouco não se desdobrou em pisoteamento. São vídeos feitos tanto por pessoas que estavam na rua quanto por outras que filmaram do alto, desde os seus apartamentos. Quem é que escreve a história?

Será que vivemos a iminência de uma neo-ditadura, que implicará a drástica redução da liberdade de expressão? Paranoia ou verdade evidente?

Ainda que seja um regime civil, instituído por uma farsa de democracia –o impeachment foi republicano na forma, não no conteúdo–, o governo Temer parece desenhar sim uma forma camuflada de ditadura, baseada no seguinte tripé: a aliança simbiótica com um poder legislativo podre, com o empresariado e com a grande imprensa nacional, que o blindam; a despreocupação com as urnas, e portanto com uma política de concessão às pressões populares; e o uso discricionário da violência de Estado através do aparato militar. Bombas de gás jogadas em calçadas de bares, revistas truculentas a pessoas comuns na rua, prisões e espancamentos, podem ser apenas o início. O país caminha cada vez mais para uma dualização perigosa, mas está, certamente, muito longe de uma guerra civil. Esse uso autoritário e aleatório da violência visa instalar o medo, crendo ser possível diminuir o dissenso pelo terror.

Igualmente, o governo quer dar um "cala boca" naqueles que, imbuídos de um espírito crítico, acusam sua ilegitimidade. Artistas e professores são, todos, persona non grata nesse Brasil novo e sombrio. Reflexo disso é o projeto de lei "Programa Escola Sem Partido", que tramita no Congresso. Levantando-se "contra o abuso da liberdade de ensinar", a sinistra proposta de lei visa instalar uma censura dentro das escolas, através da qual os alunos, imbuídos de códigos de conduta semelhantes aos do consumidor, e amparados pela moral das famílias, podem denunciar a suposta doutrinação política dos professores, tidos assim como inimigos potenciais. Trata-se, como se vê, de um ataque frontal à essência do que significa a escola democrática: o lugar do choque de opiniões, da aceitação da diferença, e nunca da neutralidade moralista e desidratada de contradições.

O panorama para os próximos anos é muito grave: incentivo aos contratos precários de trabalho, arrocho aos aposentados com o saque à previdência social, e congelamento dos investimentos públicos nos programas sociais e nos gastos com educação e saúde, destruindo boa parte da rede de proteção social instituída pela Constituição de 1988. Esse é o horizonte profundo do golpe que apenas se inicia, criando um período especial de "desconstituinte", na expressão de Guilherme Boulos.

Quis o destino que o sobrenome do presidente usurpador fosse um sinônimo de medo, o verbo correspondente ao substantivo temor. Acaso objetivo, como diriam os surrealistas. O conteúdo se entranha na forma. São, os dois, uma coisa só.


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