Folha de S. Paulo


A Câmara e a câmera

O nascimento da democracia ateniense, no século 6 a. C., está ligado ao deslocamento de poder das famílias para uma ordem nova e abstrata, entendida como pública.

Assim, a autoridade patriarcal foi substituída por princípios geométricos de equivalência, que estruturam a cidade segundo uma relação dicotômica entre o privado (a casa, lugar da privação) e o público (a ágora, lugar da liberdade). Daí o parentesco entre as palavras polis (cidade) e política.

No Brasil, parece que até hoje não chegamos a compreender bem o que seja essa ordem pública.

Como demonstrou Sérgio Buarque de Holanda, a modernização industrial brasileira conservou os traços patrimonialistas de uma sociedade colonial e escravocrata, que nunca respeitou a impessoalidade dos códigos de ética públicos, tratando-os com o calor passional das relações pessoais e de favor.

Daí o nosso pendor para cultuar líderes populistas que fazem política como se presenteassem as pessoas, e nossa tendência a considerar o Estado como instituição que pode ser saqueada em proveito próprio. Do ponto de vista urbano, o resultado são cidades em que os poucos espaços públicos são privatizados, isto é, gradeados ou destruídos para a passagem de automóveis.

Nosso impasse hoje é perceber que, se por um lado, o PT esteve longe de cumprir a sua missão histórica de romper o pacto patrimonialista brasileiro, por outro, as forças que se levantaram contra ele, na linhagem Cunha-Temer-Renan, usam o discurso anticorrupção apenas como bravata farsesca, representando na verdade uma regressão obscurantista em relação ao problema.

Com isso, sequestram perigosamente o real ímpeto de transformação surgido na sociedade em junho de 2013 para assegurar a conservação do velho status quo patriarcal.

Tudo isso ficou nítido no teatro grotesco da votação do impeachment na Câmara dos Deputados.

Pois, sintomaticamente, uma imensa quantidade de parlamentares favoráveis à queda de Dilma optou por embasar o seu voto não em considerações políticas ou legais sobre o real problema em questão, mas em frases de um sentimentalismo vago e retórico contra a corrupção e a favor da mudança, acompanhados por homenagens a entes queridos, como filhos, maridos e esposas ou "amigos" pertencentes às suas redes pessoais de favor.

Claramente, o mais grave rito político do país, registrado sob a lente implacável da televisão, foi vivido como se fosse uma cerimônia de entrega do Oscar, ou um "Show da Xuxa", em que durante anos a fio as crianças com direito momentâneo à palavra agradeciam ao pai, à mãe e à própria Xuxa –personagem que, no caso, aparece reencarnada na figura de Eduardo Cunha.

Com uma hiperconsciência teatral de toda essa ópera bufa, Paulo Maluf se limitou a dizer a palavra "sim" acompanhada de um sorrisinho de canto de boca.

Em tempos onde os protagonistas da nossa vida pública assumem deslavadamente o discurso fascista, como Jair Bolsonaro, ou rodam como pombas giras evangélicas em transes calculadamente canastrões, como Janaína Paschoal, Maluf assumiu um papel minimalista.

Ao que tudo indica, ante o rebaixamento da esfera pública à proximidade familiar de nossas salas de estar, a Câmara foi simbolicamente tragada pela câmera e pela tela.


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