Folha de S. Paulo


A gente que é malungo acredita em qualquer coisa

Seu pai conheceu sua mãe na praia, filha. Seu pai tava surfando. Sua mãe tava fazendo bambolê. Não. Você sabe que o seu pai não surfa. E sua mãe não faz bambolê. Vou falar a verdade.

O cachorro do seu pai se enroscou com o cachorro da sua mãe, e eles sentiram que tinham sido escolhidos pelos próprios cães. Que cães? Tá bom, filha. Não foi bem assim.

Seu pai lutava boxe e salvou sua mãe de um assalto. Boxe, não. Muay thai. Não. Jiu-jítsu. Não. Parei.

Catarina Bessel/Folhapress

A verdade, filha, é que foi pelo Instagram. Ah, você não sabe o que é Instagram? Ih, gente, não sabia que Instagram tinha virado coisa de velho. Era uma rede social dedicada a fotos de comida e de gato, e de pés pro alto com algum drinque colorido na mão, e memes do Chapolin sincero. Quem é Chapolin? Puts, que lapso na sua educação. Nota mental: mostrar Chapolin pra minha filha.

Voltando: sua mãe foi ver a peça do seu pai, eles trocaram mensagens privadas no Instagram, marcaram de se ver. Seu pai chamou ela pra um jantar cheio de gente que ela não conhecia. E ela foi. Ele achou bonito, corajoso, ela vir sozinha, e quando ela chegou era tão bonita e corajosa, ainda mais que no Instagram –e olha que as pessoas costumavam ser tão bonitas e corajosas no Instagram. Papo vai, papo vem, eles descobriram que tinham nascido no mesmo dia, no mesmo ano. Na mesma hora. E eles tinham acabado de fazer 30 anos.

Tem uma palavra pra isso, o Prata falou. "Malungo", que é uma espécie de xará, só que de aniversário. No começo, era assim que os escravos chamavam aqueles que tinham chegado na mesma embarcação. Logo a palavra passou a designar os colegas de aniversário –afinal também teriam chegado no mesmo barco.

Seu pai não acredita em nada, filha. Ou pelo menos não acreditava. Tarô, cabala, horóscopo ou homeopatia. Sua mãe acredita em tudo ao mesmo tempo: mapa astral, cachoeira energizante, parto ecológico, e jura que já curou asma botando um jabuti debaixo da cama. E seu pai passou a acreditar em tudo isso, e ainda mais: que existe uma espécie de irmandade malunga, uma conexão inexplicável entre os aniversariantes, como se tivessem chegado na mesma embarcação. Eu sei, filha, que isso não faz o menor sentido. É que a gente que é malungo acredita em qualquer coisa.

(Você já deve ter feito as contas: você nasce nove meses depois do dia em que a gente nasce. Filha, você é uma filhote de malunga.)


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