Folha de S. Paulo


Pós-verdade dá a impressão de que a política já foi o lugar da verdade

Catarina Bessel/Folhapress
Ilustração Gregorio Duvivier de 6.mar.2017

"Pós-verdade" foi eleita a palavra do ano de 2016 pelo dicionário "Oxford". A imprensa explica que Trump ganhou por causa da pós-verdade —"o presidente inventa fatos que não ocorreram mas o povo não se importa e acredita em tudo o que ele diz". Trump, estranhamente, também credita à pós-verdade a enxurrada de críticas que recebe —"a imprensa inventa fatos que não ocorreram mas o povo não se importa e acredita em tudo o que ela diz".

Num camarote de cerveja, o ex-futuro-prefeito Pedro Paulo explicou, essa semana, porque é que o acusam de bater na mulher: "Vivemos a era da pós-verdade". O olho roxo não passa de um pós-olho, o dente quebrado não passa de um pós-dente. "Vivemos na era da pós-verdade" is the new "exagerei nos remédios pra labirintite".

Não concordo com a ideia de que os fatos, hoje em dia, já não importam —não porque os fatos, hoje em dia, importem, mas porque dizer que eles "já não importam" dá a impressão de que em algum momento da história eles importaram. Como se vivêssemos, antigamente, no mundo idílico da verdade nua e crua, um mundo em que os jornais se atinham aos fatos, os governantes só falavam do que tinham certeza, os articulistas jamais ousavam tecer hipóteses que não fossem cientificamente comprovadas, até que a internet —sempre ela— inventou a manipulação —Eureka! E a partir daí tudo degringolou. Só que não.

A Guerra de Troia. O caso Dreyfus. O incêndio do Reichstag. O tiro no pé do Lacerda. A cenoura de Mario Gomes. Nunca houve, em toda a história, um fato inconteste. Contra argumentos, os fatos nunca serviram pra nada. Primeiro inventa-se uma hipótese, depois é que se inventa os acontecimentos que a validam.

Já dizia Trótski: não existem fatos, só manipulações. Só que não foi ele que disse. Foi Nietzsche. E não disse isso. Mas o que importa? Nunca importou. O ponto de vista cria o objeto, disse um linguista. Ou não disse. Vai saber. Quer dizer: hoje em dia, graças à possibilidade de fazer registros audiovisuais e checar informações na internet, inventar não-fatos ficou muito mais difícil.

O século 21 não inventou a mentira mas o "fact checking". Hoje é muito mais fácil desmascará-la. E no entanto imprensa e classe política continuam mentindo igual. O que mudou não foi uma maior incidência de mentiras mas o fato de que todo o mundo sabe que é mentira mas já ninguém se importa com isso. Acho que estamos vivendo a era da pós-mentira.


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