Folha de S. Paulo


O sinteco gelado

Durante muito tempo, deitei-me cedo, disse Proust, mas eu, que não sou Proust, e inclusive só li o livro até aí, que na verdade é a primeira frase, durante muito tempo não conseguia dormir cedo de jeito nenhum por causa do calor do Rio de Janeiro. O corpo todo suava e grudava no lençol e quando finalmente conseguia dormir, se por acaso abrisse os olhos no meio da noite, me deparava com o teto do quarto a um palmo do meu rosto. O céu, como temiam os gauleses, tinha desabado sobre a minha cabeça. Berrava até que alguém viesse me resgatar. Quando alguém me puxava pro lado, percebia que tinha acontecido a mesma coisa que acontecia todos os dias: depois de cair da cama, tinha rolado pra baixo dela.

O que ninguém entendia era por que não acordava quando caía, nem por que diabos rolava pra debaixo da cama. Acho que foi minha mãe quem matou a charada. Encostando o dedo no piso de taco sob a cama, descobriu que aquele pedaço de madeira intocada pelo sol era o ponto mais gelado da casa. Na falta de ar condicionado, a sabedoria sonâmbula me encaminhava pra uma Sibéria particular, o Sinteco Gelado, onde podia estatelar o rosto no chão e dormir com a bochecha fresquinha.

Meus pais ficaram com pena e passaram a deixar a gente dormir no quarto deles quando o calor apertava. Entrávamos no único cômodo da casa com ar condicionado como quem entra na Disney. Lembro de abraçar, com devoção, o aparelho marrom e barulhento, que chegava a sacudir quando ligado. Aquilo era uma espécie de taco gelado que ainda por cima produzia vento. Achávamos até o barulhinho gostoso. Hoje percebo que lembrava o motor de um Chevette. E, mesmo depois que desligavam o ar, de manhã, ainda podíamos apertar o travesseiro e saía um ventinho gelado que tinha ficado preso ali dentro.

E tinha o cheirinho. O quarto inteiro cheirava a frio –o mesmo cheiro da mala da minha tia que morava nos Estados Unidos. Ela abria a mala e mergulhávamos o rosto nas roupas, ainda geladinhas, cheirando a neve –imáginávamos.

No exato momento em que escrevo, suo em bicas. Nunca instalei o ar condicionado no escritório. Lembro de João Cabral: "O desábito de vencer/não cria o calo da vitória/não dá à vitória o fio cego/nem lhe cansa as molas nervosas". Não é que goste de sentir calor, mas gosto demais de parar de sentir calor. Falando nisso, com licença. Preciso encostar minha bochecha no chão. Convido o leitor a fazer o mesmo. Oh, Proust. Sabe de nada, inocente.


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