Folha de S. Paulo


Qualquer coisa é melhor que o comunismo, diz o primo aristocrata

Meu bisavô foi muito rico. Seus filhos, como é natural, foram thorbatistas -espero que não tenham matado ninguém, mas fizeram todo o resto, de tal modo que pra geração do meu pai já não sobrou nada (pra minha geração, caso alguém esteja interessado, sobrou pouco menos que isso).

Meu primo Aurélio, que não se chama Aurélio mas poderia se chamar, é da geração do meu pai. Mas ninguém avisou a ele que o dinheiro acabou. Acha que tá em Mônaco. Aurélio é o famoso aristocrata: aquele rico vintage que preferia ter nascido em outros tempos. Como todo aristocrata, é nostálgico.

Na foto de perfil, Aurélio sorri de smoking e gravata borboleta. Em outra foto, o velocímetro do seu carro importado marca 180 km/h. Ou seja: não somente Aurélio dirige a 180 km/h como consegue tirar fotos do velocímetro enquanto isso. É um acrobata da aristocracia. Um virtuose. Atrás do seu rosto laranja (além de nostálgico, todo rico é laranja, puxando pro salmão) vemos castelos, estações de esqui e, numa delas, um carro conversível com a legenda "bilionários são importantes".

Catarina Bessell

Aurélio, hoje, passa o dia no Facebook fazendo campanha pro Crivella. "Só mesmo a Universal pra salvar o país da ameaça comunista", comenta na minha página. "Você quer que o Rio se transforme na Coreia do Norte?"

Não importa que um prefeito não possa transformar uma cidade na Coreia do Norte. Não importa que, nem que pudesse, transformaria. Importa que ele tem um argumento só: Freixo é um comuna. "Foi por causa do medo do comunismo", respondi, "que gente como você deu um golpe em 64". Logo me arrependi: peguei pesado de subentender que ele foi a favor do golpe militar. A resposta me surpreendeu. "Verdade, primo. Apoiei mesmo a ditadura. E não me arrependo. Foi necessária."

Primo, sua aristocracia não tem glamour nenhum. Você não tá em Mônaco mas no Haiti. Seu sapato italiano tá imundo de sangue. Você quer Crivella pela mesma razão que você quis a ditadura: você não quer perder privilégios. Mesmo que isso implique eleger um bispo homofóbico, machista e acusado de corrupção. Mesmo que isso implicasse matar e torturar centenas de pessoas.

A festa do Crivella foi na Vieira Souto -cheia de milionários e ex-milionários que, como o meu primo, apoiaram a ditadura e enriqueceram ao longo dela. São essas mãos cheias de sangue que querem levar Crivella à prefeitura. Todo dia é dia de lembrar que o nosso subdesenvolvimento interessou e continua interessando a muita gente.


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