Folha de S. Paulo


O bloco que não acabou

Meninos, eu vi. Vi uma multidão sair às oito da manhã da Candelária sem saber para onde ia, meninos, vi a cidade sendo ocupada por mulheres de peito de fora, algumas na perna de pau, outras tocando xequerê, algumas de peito de fora na perna de pau tocando xequerê, ou alfaia, ou trompete, vi seios tão livres quanto mereciam ser, tão livres quanto os meus sempre foram, vi e vivi Deus em sua forma líquida também conhecida como sacolé de cupuaçu, "no paraíso, acho que tudo é de cupuaçu", disse a minha amiga Laura, já no inferno, ponderou, "só a ponta do seu cotovelo é de cupuaçu", vi melhores amigos que eu só encontro uma vez por ano, "tira a calça jeans, bota outra calça jeans", cantou a Bruna, "morena você tem duas calças jeans", tomei quartos, tomei terços, tomei meiotas, daí passei a ver tudo melhor, "quanto é um quarto mais dois terços mais metade mais três goles de água amarga", perguntei, "tenho a impressão, alguém disse, que é uma dízima lisérgica", e mesmo amando o Rio mais que tudo vi gente cantar "cidade que desaloja mais de quarenta mil", vi os franceses da fanfarra hackearem o bloco e o vão do MAM inteiro cantou ô, ôô, ô, ô, ô, ô, meu Deus, isso é marchinha ou White Stripes?, vi colegas da Folha e combinamos de não mandar coluna nenhuma, vi homens beijando mulheres beijando ambos, vi beijos triplos espetaculares e tentativas de beijo quádruplo sempre frustradas por causa da angulação das bochechas, foi Deus, tive uma epifania, se é que ele existe, que percebeu que na primeira fornada de seres humanos todos só pensavam em beijos quádruplos e tomou uma providência: "É preciso aumentar essas bochechas para que os seres humanos façam outras coisas da vida" e Deus boicotou o beijo quádruplo, e daí o ser humano fez todo o resto que vocês estão vendo, os calmantes, as postas-restantes, os alvarás, os porta-alvarás, e talvez fosse melhor mesmo que a gente perdesse nosso tempo com beijos quádruplos, senhor Deus, do que com tanta coisa inútil, vi a PMERJ, defensora da moral e dos bons costumes, jogando spray de pimenta em casais se beijando, quando não estava batendo em ambulantes que estavam vendendo outra cerveja que não a água suja que supostamente patrocina o carnaval carioca, vi a fanfarra ainda numerosa chegar às quatro da manhã no Palácio Guanabara e tocar "Carinhoso" para a polícia que mais mata no mundo, vi um policial se dobrando a Pixinguinha e abraçando os foliões, vi uma multidão que não sabia para onde ia, mas não parou de ir nunca porque sabe que não importa para onde se vai, mas como se vai: com o abraço largo e o coração quente.


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