Folha de S. Paulo


A mesa de cabeceira

Essa é a história de Pedro. Um homem que virou uma mesa de cabeceira.

Quando Pedro viu Marta, deixou de enxergá-la. Ver Marta coincidiu com o momento de não conseguir mais vê-la. Deixou de ver rugas ou verrugas. Deixou de ver cravos, e narinas, e cutículas, e partículas de suor.

Via a pele pura, "diáfana", ele pensou, e então percebeu que pensava em palavras que ele nunca soube o significado. "Diá-fa-na." E as palavras eram sons. E Marta é uma palavra boa de se escrever no vapor do espelho, pensou, e escreveu.

Marta já não era um ser humano com um sangue e veias e um intestino grosso. Via uma nuvem com cabelos. Diáfanos. E os cabelos não eram feitos de cabelos. Eram feitos de algum material que ainda havia de ser inventado, que quando venta voa, e quando chove não gruda no rosto, e quando mergulha no mar não perde o volume, igual ao cabelo da pequena sereia, ele pensou. E quando pensou isso pensou que talvez já não estivesse pensando as coisas muito bem. E fez uma música sobre isso.

Deixou de saber de horários e datas e cálculos e siglas e chamava CPF de UFRJ e RG de PM, afinal de contas eram só letras, e qual a importância das letras se nenhuma dessas serve pra escrever Marta, e afinal de contas também se esqueceu das contas, afinal de contas eram só contas, e deixou de pagá-las.

Como deixou de ouvir palavras, as palavras deixaram de chegar. Olhava para o copo e já não vinha a palavra copo. Ele então pedia um recipiente onde pudesse colocar um pouco de... E já não lhe vinha a palavra água. E então ele ria. E aí veio a pior fase, a fase do riso de qualquer coisa. Quando não sabia o que dizer, quando sabia, mas não dizia, quando queria chorar de tanto rir, quando já não queria nada, Pedro ria, sem saber do que é que ria, ou o que queria.

Queria parar de rir de tudo, mas ria de tudo o que ouvia. Resolveu parar de ouvir. O que era grave para um músico. Então parou de tocar. O que era ainda mais grave para um músico, e ainda mais agudo. E já não ouvia Marta, que era a única coisa que precisava ouvir. Mas ao menos já não ria. Sofria. Mas não ria.

Curvou-se ao lado da cama de Marta, para que ela pudesse pousar as coisas em suas costas. Às vezes eram coisas quentes. E ele deixou de sentir o calor na pele. Ou o frio. E os amigos diziam que ele fazia falta. Mas ele estava ali, debaixo do abajur, em cima do carpete. Ao lado dela, quietinho. E isso era tão bom. E ele era tão bom nisso.


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