Folha de S. Paulo


O sangue que corre em nossas veias

Toda relação filial passa por três fases. Um: meu pai é a melhor pessoa do mundo. Dois: meu pai é a pior pessoa do mundo. Três: meu pai talvez não seja a pior pessoa do mundo nem a melhor, mas alguma coisa entre os dois.

É a terceira vez que vou a Portugal, e é a terceira vez que me surpreendo. Nunca vi um país tão engraçado. O humor que eles fazem está léguas à nossa frente em inovação, coragem e consciência política. Discute-se política nas ruas, na televisão e no rádio. O rádio não é considerado um veículo menor que a televisão, mas um canal paralelo, tão forte quanto, onde os melhores humoristas falam diariamente -e as músicas que tocam não são ditadas pelo jabá.

Apesar da crise econômica persistente, Lisboa continua borbulhante de cultura e gastronomia. Come-se muito bem, e pela metade do preço do Rio. A noite dura a noite inteira, e às vezes atravessa o dia. O turismo se incrementa de maneiras inusitadas: carrinhos elétricos ("tuctucs") circulam numerosos e ônibus anfíbios mergulham no rio Tejo. As pessoas marcam de jantar, e chegam na hora, e durante o jantar quase não tiram o celular do bolso.

Quando falam dos pais "históricos", os brasileiros parecem presos eternamente na fase 2: meu pai é uma besta e a minha vida é uma catástrofe por culpa única e exclusiva dele.

Adoramos creditar a culpa do nosso atraso civilizatório à herança portuguesa: chegamos ao ponto de inventar o mito da burrice lusitana -e muita gente acredita nele.

"Se a gente tivesse sido colonizado pelos ingleses, tudo seria diferente" -a gente tem inveja até da colonização alheia, como se ela tivesse sido menos brutal. Pior: o famoso complexo de vira-lata contamina toda a árvore genealógica galho acima. Atinge negros, índios, europeus: "O índio brasileiro era diferente do índio americano: o nosso era muito mais atrasado". Ou ainda: "Os negros que vieram pro Brasil não se comparam aos negros que foram pros Estados Unidos, os nossos eram mais preguiçosos". Acreditamos ser a soma das escórias africana, indígena e europeia, e isso justifica nosso atraso.

Melhor mesmo seria crescer e chamar a responsabilidade do suposto atraso para si, fugindo do determinismo genético. Mas, mesmo que a gente não conseguisse escapar do que estaria escrito no sangue que corre em nossas veias, talvez fosse o momento de procurar, nele, a educação, o afeto, a poesia, a cultura, a profundidade e o humor lusitanos.

Temos muito a aprender com nossos pais -só precisamos fazer um pouco de psicanálise.


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