Folha de S. Paulo


Sísifa feliz

O mundo tem uma relação complicada com os atores. A primeira impressão é que são idolatrados: frequentam todas as campanhas publicitárias, vivem nos castelos de "Caras", nas ilhas de "Contigo", nas cordilheiras da "Quem".

No entanto basta um olhar mais aprofundado para perceber uma relação, no mínimo, desconfiada para com (sempre quis usar "para com") o ator.

"Não acredita nele, esse cara é um ator". O ator está lá nos últimos círculos do inferno, ao lado dos advogados e dos atendentes de telemarketing.

A mesma desconfiança temos com a mulher, de quem a sabedoria popular diz que devemos desconfiar. "Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir?" "Todo o mundo trai, a diferença é que mulher sabe trair."

Toda mulher é vista como uma atriz: talvez seja a possibilidade de esconder a paternidade que deixe o homem paranoico. Talvez seja a possibilidade de fingir um orgasmo. O fato é que aprendemos desde cedo: mulher mente.

Fernanda Torres venceu todos os preconceitos. Mulher, atriz, filha de gênios (mais que isso: filha da nossa maior unanimidade), Fernanda é a pessoa mais genial –e confiável– que eu conheço. Sigo ela há muito tempo.

Na época, para seguir alguém não bastava clicar no "follow" –antigamente era preciso ir aos teatros, cinemas, enfrentar filas, pagar ingressos.

Mesmo que fosse na televisão: era preciso ficar acordado até tarde, perder festas, jantares, aniversários –dava trabalho gostar das pessoas.

Segui a Fernanda obsessivamente, e ela nunca me decepcionou.

Seu livro "Fim" é um primor. Seu livro "Sete Anos" é uma delícia do começo ao fim. Fernanda fala de pornochanchada como quem fala de Nietzsche, enxergando metafísica na putaria e vice-versa.

Foge do óbvio como se ele fosse um atendente de telemarketing. Cada coluna tem o entusiasmo da primeira e a coragem da última. Fernanda levou para a crônica o grande trunfo da atriz, o de injetar emoção na repetição.

Camus comparava o ator a Sísifo, figura mitológica condenada a carregar uma pedra até o alto do monte e, chegando ao topo, assistir a pedra rolar ribanceira abaixo, para só aí repetir sua tarefa. A cada dia, o ator de teatro perde tudo o que faz e, no dia seguinte, retoma tudo do começo.

Fernanda, nossa melhor Sísifa, passou a vida empurrando cada rocha como se fosse a primeira, como se fosse a última. À diferença dos espetáculos, suas novas rochas já não precisam descer ribanceira abaixo. No livro, elas estão lá no alto, perfeitamente suspensas, enfileiradas, como um Stonehenge celeste –só nos resta venerá-las.


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