Folha de S. Paulo


Segredo de família: o criador de Barbosa

Uma das principais características dos avôs é saber contar histórias para os netos. Por isso, digo que fui um privilegiado, pois o meu avô paterno, que também se chamava Humberto, além da capacidade impressionante de descrever os fatos nos mínimos detalhes, como suas as viagens, tinha como destaque no seu repertório de histórias, o futebol.

Mas não o futebol como conhecemos hoje, mas sim o esporte nos seus primórdios, no início do século passado. As histórias que ele contava não estão em filmes antigos, fotos ou até em livros.

Eram reminiscências de um futebol amador, quase mambembe. Por exemplo, ele como zagueiro do Germânia, no início da década de 1930, recebia apenas os passes de bonde para defender o time e, por exemplo, ter de marcar o poderoso ataque do Paulistano ou a lenda chamada Friedenreich.

Também era impossível não se sentir de calças-curtas e usando suspensórios quando ele narrava como a capital paulista recepcionou o Palmeiras após a conquista da Copa Rio em 1951 e descrição de cada um dos 13 gols, do clássico entre Santos e Palmeiras (1958), que terminou em 7 a 6 para os santistas, sempre que íamos ao Pacaembu.

Dentro das histórias contadas por ele, merecem um capítulo os vários relatos do futebol argentino na década de 1930, pois por vários anos ele trabalhava alguns meses no país vizinho.

A começar pela final da Copa do Mundo de 1930 -ele foi um dos poucos brasileiros que viram a decisão do primeiro mundial - em que meu avô contava desde a travessia dos argentinos, que saiam de Buenos Aires, pelo Rio da Prata para ver o jogo em Montevidéu, até detalhes da partida que sempre incluía o comentário tendencioso que os uruguaios só venceram aquela partida, pois usaram uma bola irregular no segundo tempo. [Aqui vale um adendo. Realmente na decisão do Mundial de 1930 foram usadas duas bolas diferentes, uma em cada tempo. Por um acordo entre as federações dos dois finalistas, no primeiro tempo foi usada uma bola argentina - com vitória dos argentinos por 2 a 1 - e na etapa complementar foi utilizada uma pelota fabricada no Uruguai e o resultado da partida acabou em 4 a 2 para os uruguaios].

Do futebol argentino de clubes, além dos estádios lotados, ele contava do estilo de jogo baseado no toque de bola e que os jogos eram paralisados em caso de chuva, pois com o gramado molhado era impossível a troca de passes. Por isso, até o final de sua vida ele insistia que os argentinos não sabem e não gostam de jogar em dias de chuva.

O segredo que me referi no título foi que o meu avô foi uma das pessoas que influenciaram Moacir Barbosa a se tornar goleiro. [Para quem não sabe, Barbosa foi nosso arqueiro na Copa de 1950, aquela que perdemos em casa para o Uruguai. Não são poucos que afirmar que o arqueiro teria falhado no segundo gol dos visitantes. Todos vão ouvir vários relatos desse jogo já que estamos perto de 16 de julho, data da partida, e também com a proximidade do Mundial de 2014].

Nos campos de várzea paulistanos do final da década de 1930, Barbosa tentava lugar jogando na linha, mas segundo meu avô, não tinha grande habilidade com a bola nos pés, mesmo tendo muita velocidade e impulsão. Por isso, o meu avô sugeriu que Barbosa tentasse jogar como goleiro. Como tinha visto vários goleiros argentinos jogar - por muito tempo os arqueiros do país vizinho foram considerados os melhores do continente - meu avô deu algumas dicas para Barbosa de como saltar, se posicionar e, principalmente, se antecipar nos lances de cruzamentos para ter vantagem sobre os atacantes.

Esta última pode ter sido fatal na decisão da Copa de 1950. Pois foi assim, ao pensar que o uruguaio Ghiggia, quase na linha de fundo, fosse realizar um cruzamento para área, que Barbosa deixou espaço entre seu corpo e a trave. Só que o atacante chutou a bola direito para o gol e ela acabou entrando justamente neste espaço deixado pelo nosso goleiro.

Sempre que contava a história de Barbosa, meu avô terminava com a seguinte frase: "Não fiquei triste pela derrota do Brasil, mas sim pelo Barbosa, que nunca mais vi depois que ele se tornou jogador profissional. Gostaria de ter tido a oportunidade de dar pelo menos um abraço de conforto no meu velho amigo".

Até a próxima!
Mais pitacos em: @humbertoperon


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