Folha de S. Paulo


Não é pecado gostar de futebol

Na partida entre Brasil e Uruguai, durante a Copa das Confederações, enquanto eu tentava observar a partida para fazer um texto para este espaço, senti um braço batendo no meu ombro esquerdo. Ao me virar para saber do que se tratava, ouvi uma voz feminina me perguntando: "Com tudo o que está acontecendo no país agora - na época do jogo vivíamos o auge das manifestações populares nas ruas das cidades brasileiras - você consegue falar de futebol?"

Antes que eu educadamente comentasse a falta de ética de minha companheira de trabalho, já que ela estava atrapalhando a minha tarefa ao desviar minha atenção da partida, ela continuou com seu discurso panfletário.

"Por causa de pessoas como você, que só sabem falar de futebol é que o Brasil está no caos que nos encontramos. Agora, todo mundo vai comemorar as vitórias da seleção e as reivindicações dos últimos dias serão esquecidas", completou.

Neste momento não teve outro jeito. Liguei o dispositivo de gravação da partida e tive que responder as indagações da colega.

Sem levantar a voz, pois ela gostaria de provar que todos que gostam de futebol são fanáticos e apelam quando são contrariados, comecei dizendo que o fato que de alguém gostar muito de futebol - aliás, confessei a minha dependência em "De vício ao fanatismo", não a torna um completo alienado e que não comete pecado algum quem gosta de falar de futebol.

Por exemplo, já que estamos falando dos gastos exorbitantes para a organização da Copa das Confederações e também da Copa do Mundo, não custa lembrar que essas críticas começaram com pessoas que seguramente conhecem muito de futebol.

Recordei a minha manifestante de plantão que desde que o Brasil foi indicado como sede do Mundial de 2014, várias pessoas que trabalham com esporte passaram os últimos seis anos apontando irregularidades como: o preço exorbitante dos estádios, a construção de campos em cidades em que não existem grandes times, o uso de dinheiro público nas obras e que o chamado "legado" da Copa do Brasil seria muito pequeno.

Ainda deu para dizer que uma vitória da seleção não desvia a atenção do povo. Hoje, com a grande quantidade de meios de comunicação e as redes sociais isso não acontece. Não podemos nos esquecer que as grandes vaias que os políticos brasileiros ouviram na nossa história aconteceram quando eles estavam em jogos de futebol ou em eventos esportivos. E também não é nenhum exagero dizer que para vários torcedores o seu clube de coração é mais importante que o time brasileiro.

Para não voltar muito no tempo ainda falei que em 2002, o ano da conquista do quinto título mundial do Brasil, o presidente Fernando Henrique Cardoso recebeu toda a delegação campeã, mas nem por isso ele conseguiu eleger José Serra, o candidato que ele apoiava. Muito mais que o futebol sempre foi a situação econômica do país que influenciou no resultado das eleições.

Complementei dizendo que não há como negar que em 1970, com a conquista do tricampeonato mundial, a ditadura militar (1964-1985) se aproveitou politicamente da seleção, mas isso aconteceu em um momento em que imprensa estava censurada. Também disse que muitos jornalistas esportivos sempre usavam seus espaços para denunciar os problemas que o país passava.

Isso sem falar na chamada "Democracia Corintiana", que surgiu no início dos anos 1980. Um movimento que começou em um clube de futebol, liderados por jogadores e que, mostrou para o povo de uma maneira simples que todos podem decidir seus destinos com uma única arma: o voto.

O meu discurso já estava ficando longo demais, mas ainda lembrei que o futebol teve papel importante na integração do negro na nossa sociedade. Isso sem citar os milhares de profissionais - não só jogadores - que têm como o futebol como sustento de suas famílias.

Por fim, até falei que se tantas crianças têm interesse por futebol, o esporte poderia ser uma excelente ferramenta na educação. Eu, por exemplo, só tenho o hábito da leitura porque, quando criança, sempre me incentivaram a ler textos tendo como tema o futebol e o esporte. Muito do que eu sei de geografia e história também aprendi graças ao futebol.

Sem argumentos, minha colega engajada, com seu discurso tolo contra os amantes de futebol, virou as costas foi embora e eu consegui ver a partida.

Até a próxima! Sempre falando de futebol e tentando entender - e respeitar - quem não gosta de ver a bola rolando.

Mais pitacos em: @humbertoperon


Endereço da página:

Links no texto: