Folha de S. Paulo


Não existe em nossa espécie altruísmo que não espere nada em troca

15.mai.1997/AFP
ORG XMIT: 305301_1.tif Madre Teresa de Calcutá acena para freiras da sede da de sua congregação, as Missionárias da Caridade após missa em Nova Déli, Índia. (FILES) This 15 May 1997 file photo shows Mother Teresa waving to nuns from the Missionaries of Charity after a mass at the congregation's home for destitute children in New Delhi. A magazine survey released in New Delhi, 12 August 2002, showed Mother Teresa has been voted the greatest Indian since the country's independence in 1947, ahead of India's first prime minister Jawaharal Nehru. The poll did not include the leader of India's non-violent freedom struggle Mahatma Gandhi because the magazine decided
A missionária madre Teresa de Calcutá (1910-1997)

Dentro de nossas cabeças mora um contador. Um não, vários. Todos eles zelam pela troca que achamos justa, e troca justa é um dos assuntos mais importantes da nossa vida, qualquer coisa fora dela nos causa raiva: toda raiva provém do sentimento de injustiça, e é a raiva o motor que será usado para buscar corrigi-la. A raiva é, pois, mãe da justiça.

Quanto aos contadores: há os cruéis e explícitos, que vigiam se o preço cobrado está extorsivo ou não; há os politizados, que querem derrubar autoridades que não foram fiéis aos nossos votos...

E há os gentis. Esses lidam com a contabilidade mais delicada de nossas vidas: a que envolve afeto. Quando os bons sentimentos entram em pauta, a espécie humana é capaz de mostrar sua face mais bela: a altruísta. Queremos o bem de quem amamos. Essa gente nos desperta uma generosidade insuspeitada, uma vontade de agradar, de presentear, de fazer sorrir, que a nada se compara. Damos-lhe prazer e atenção; queremos saber de suas histórias e de suas dores; ficamos até felizes com sua felicidade (habitualmente a felicidade alheia nos causa inveja, que é fruto de um sentimento de injustiça distorcido: "Por que eles, e não eu?").

Mas não se iluda: o contador está alerta. Quietinho, disfarçado, gentil... mas alerta. Não existe em nossa espécie altruísmo que não espere nada em troca. Até mesmo são Francisco de Assis, o ícone da generosidade, dizia que "é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado". Ou seja, o santo esperava troco! Aquela pessoa mais amada, que no entanto só olha para o próprio umbigo, só quer ser ouvida e nunca ouve, só fala de si mesma até se (e nos) cansar, que não se engane: sua batata está assando. Em fogo brando, mas está.

É que no caso das relações afetivas a linha de crédito é mais elástica: nossa capacidade de tolerância é muito grande. Só existe um caso que se aproxima do amor incondicional, o que temos pelos filhos. Tirando esse –que vai ficando parecido com o amor pelos amigos à medida que eles crescem–, o dia do acerto de contas chega, e ele dificilmente será bem sucedido.

Por causa do problema da cobrança: quem cobra sexo, quem cobra amor, recebe no máximo favor, e esta não é a moeda de troca que queremos.

Resulta que muitos relacionamentos adoecem por encrencas contábeis: não havendo troca justa, e não se podendo acertar as contas (muitas vezes é por falta de capacidade do outro: como esperar amor e atenção da parte de um narcisista, ou como provar seu amor a um ciumento paranoico?), a melhor opção seria o afastamento.

Mas pode ser tarde demais, se a amargura da injustiça das trocas já se transformou em sadomasoquismo, mesmo que sutil, o amor vira vício: um se assumindo vítima do outro (é a parte masoquista), enquanto deixa claro aos demais o monstro que o parceiro é (a parte sádica).

Portanto é melhor ter em mente como funcionamos: esse negócio de dar e não esperar nada em troca é puro autoengano. Mesmo as pessoas de baixa autoestima devotas a quem amam se ressentem do menosprezo que recebem.

Cajueiro não dá banana: é melhor avaliar bem antes de investir muito.


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