Folha de S. Paulo


Os destinos do obsessivo

A psicanálise tem duas faces: a científica e a filosófica. A primeira busca entender da melhor maneira possível como a mente funciona. A filosófica quer, tomando a científica como instrumento, propor um caminho melhor para todos nós. Portanto, a psicanálise tem desejo próprio: ela é contra o sofrimento, a crueldade, a doença; e é a favor da construção do indivíduo, sua independência e autonomia, pois sabe que são sobre esses fundamentos que a saúde mental prospera. O barato da parte científica é que quando a gente entende o mau funcionamento da mente, põe-se logo a caminho de consertá-lo... O que é o caminho filosófico.

A obsessividade é um modo de funcionamento da mente que chama particular atenção. Ele se monta a partir do nascimento sobre duas premissas genéticas: inteligência (não há obsessivos burros) e herança (pode procurar nos familiares). Uma criança assim logo entra em conflito com os comandos que lhe parecem incompetentes, seja pela forma, seja pelo conteúdo. A crise do uso do banheiro é um bom exemplo. Como podem lhe impor algo que ela própria já é capaz de gerenciar? Fazer cocô porque foi mandada? Nem pensar!

A partir daí ela seguirá dois possíveis destinos típicos: o hipercultural e o contracultural. No primeiro, é como se ela quisesse mostrar que não precisa ser mandada, pois já sabe cumprir as leis da cultura, e sabe-as muito melhor do que todos. É a criança certinha que não dá trabalho.

No contracultural, ela é rebelde, se vinga das imposições da cultura. Começa por não fazer no penico, e sim no tapete da sala. Em sua campanha negativista de protesto, será bagunceira, impontual, procrastinadora, respondona, desmazelada com suas roupas e com a higiene, tenderá a aderir à tribos bizarras. Enfim, o completo oposto do hipercultural. É pouco compreendido que o ser contracultural, prisioneiro da vingança, é um obsessivo de carteirinha.

Essa divisão é didática, na vida real os obsessivos acabam tendo uma mistura dos dois destinos, com um deles preponderando. Assim, um contracultural que adere a uma tribo bizarra tenderá a ser o líder e o mais bizarro de todos. Hipercultural, portanto, mas daquela cultura.

Pode-se pensar que a obsessividade é um problema. Conversa fiada, ela é uma bênção... Desde que seja um instrumento de seu portador. É com ela que entregamos o artigo a tempo, que ele sai bem feito, a necessidade de revisão é mínima, essas coisas. Mas quando a gente passa a ser escravo dela, aí sim, temos uma doença.

Outro dia, vendo o centro do Rio num documentário dos anos 1940, me dei conta de que os destinos do obsessivo são também sociológicos: todos, sim, todos, se vestiam com apuro; as calçadas de pedras portuguesas estavam um primor; não havia NINGUÉM gordo. Eram tempos hiperculturais.

Depois da ditadura, a rebeldia imperou. Autoridade, modéstia, pudor, discrição, esmero, higiene, bons modos, bom acabamento, boa manutenção, excelência, capricho, ruas limpas, muros sem pichação, viver dentro do orçamento passaram a ser vistos como coisas caretas e de direita.

São tempos contraculturais a clamar por equilíbrio.


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