Como psicanalista, sou um advogado de defesa do cliente que me contrata. Ele chega pagando pena, prisioneiro por décadas de uma culpa que não está clara –sua neurose–, e pior, achando-se mais culpado ainda por tê-la. Quero ver os autos desse processo que o condenou, mas eles não estão on-line, infelizmente. A coisa é tão injusta que se faz necessário um trabalho detetivesco de arqueólogo para decifrá-lo. Sim, porque ele está codificado em sintomas e sonhos, ele está inconsciente.
A beleza da coisa reside em que, à medida que vamos jogando luz na história, ela se revela injusta com o neurótico: foi resultado de incompetências –nunca encontrei história de má intenção– de sua criação carregadas pela vida afora, o famoso complexo de Édipo. Exposta a injustiça, entra então a força da justiça: a indignação e o inconformismo, a vontade de corrigir o erro.
Indignação com injustiça é um software inato que trazemos, com um resultado primeiro: raiva. Qualquer raiva é revolta contra o que nos parece injusto (mesmo que não seja). Por isso digo que a raiva é a mãe da justiça. É ela que motiva a busca de se corrigir o erro, ainda que muitas vezes tome caminhos que só fazem agravá-lo.
Um jovem cliente me perguntou: "Qual é sua motivação na vida? A minha é a vingança". Respondi que a minha era amar e ser amado. Disse ele: "É, essa também é boa... mas vingança é melhor!"
Ele era prisioneiro de um canal incompetente da justiça, deixara de viver sua vida para se tornar um vingador. Ele se ressentia da incompetência de seus pais, e era rebelde na vida como forma de vingança. Ou seja, seus pais continuavam mandando nele. O máximo desse tiro no pé é o suicídio de vingança, para deixar os pais culpados. É o único suicídio que me revolta, os outros costumam ser eutanásias.
Mas, veja só, o fato de se perceber prisioneiro do ressentimento, e a injustiça contida nisso, fez com que ele começasse a mudar o rumo de sua vida, a tomá-la para si em vez de dedicá-la a "homenagear" os pais.
Outro canal incompetente da raiva é a inveja: "Ele é mais bonito, rico e inteligente que eu, isso não é justo". O curioso é que a inveja não almeja a igualdade, e sim a inversão da desigualdade: "Quero me dar bem, e que ele se ferre". Isso ajuda a entender muitas ideologias políticas...
O ciúme, por sua vez, ora é injusto, ora é justo: quando nasce um irmãozinho e toda a atenção que o mais velho recebia lhe é retirada, o ciúme que ele tem é mais do que justo, precisa ser considerado e respeitado.
A justiça está ligada ao nosso programa de altruísmo recíproco: mesmo na amizade, se estamos dando muito mais que recebendo, um incômodo/raiva começa a surgir.
Repare em você como a avaliação de justiça/injustiça funciona quase que o tempo todo, aplicada a inúmeras situações.
A psicanálise conta com essa premissa: o complexo de Édipo é injusto, vamos corrigi-lo. A esperança de cura, em psicanálise, reside na força da justiça. A esperança de cura das doenças institucionais do Brasil reside na força da justiça.
Me encanta ver isso acontecendo.