Folha de S. Paulo


Mau humor pode ser problema em canal de expressão do desconforto

– "Tô puto!"

– "Olha aqui a solução!"

– "Eu não quero solução, quero ficar puto!"

Assim é o mau humor: ele contém uma mensagem em si. Mau humor supõe plateia. Mal-humorado sozinho em casa? Nem pensar!

Ele anuncia ao mundo uma acusação vaga, deseja que a audiência se sinta culpada por seu estado, e pior, nem saiba bem de quê lhe acusam: "O que houve?" "Nada!" Puro Kafka... O mau humor é uma punição.

Aqui, duas questões se abrem: existe malícia, má intenção no mau humor? A segunda questão é: existem outros tipos de mau humor além do punitivo?

Má intenção implica deliberação e escolha, mas mau humor supõe algum sofrimento. O mal-humorado escolheria sofrer, mesmo que tenha o gosto de fazer sofrer os outros? Ah, eis a questão sadomasoquista: mesmo explicitamente sádico, o agente do sofrimento também sofre, é também masoquista, portanto. Mas então o mau humor pode ser sintoma de uma encrenca psíquica, derivada do mau gerenciamento da raiva (a origem do sadomasoquismo é esta): não sabendo como expressar seu desconforto, sua indignação, a pessoa é levada a seus canais incompetentes de expressão, às manifestações doentias de algo que seria seu instrumento de buscar justiça –a raiva.

Victor Moriyama/Folhapres
O escritor Rubem Braga transformou seu mau humor em forma de arte
O escritor Rubem Braga transformou seu mau humor em forma de arte

Então, mesmo intencionado, o mau humor não representa uma escolha livre: a pessoa viveu mergulhada numa cultura em que o direito de indignação e de protesto não existe, ela não está acostumada a se consultar e a saber onde foi atropelada. Ela sofre de uma encrenca.

"Ah, então a gente deve entender e tolerar?" Nada disso! Entender não é gostar. Eu posso entender as causas sociais do crime, mas quero o criminoso punido, ele é responsável por seus atos. Se ele entender que tem um problema, irá talvez buscar uma solução. A solução coitadista é inaceitável (como qualquer coitadismo o é). Há canais competentes para a raiva, a civilização os oferece (eles não são tão gostosos quanto a vingança, mas... é o que temos para hoje).

A segunda questão, outros tipos, começa pela TPM. "Ah, você não é mulher, não sabe o que é sentir TPM". Não, eu sou médico, eu sei o que é TPM: estado de irritabilidade causado por edema cerebral derivado da flutuação de hormônios. É uma doença a ser tratada com recaptadores da serotonina e/ou anti-inflamatórios não hormonais. Aceitá-la como "afirmação de gênero" é um insulto: uma mulher não pode se definir por suas doenças. Nem pode usá-las como licença para matar, muito menos como bandeira coitadista, do tipo "mulher sofre".

"Mas, e o Rubem Braga e o Mário Covas?" Sim, há gente que transformou seu mau humor numa forma de arte, que é folclórica e engraçada por conta dele. A coisa se torna tão teatral que dá vontade de puxar uma cadeira e assistir.

Mas isso tem um desdobramento ruim: há quem, por isso, ache bonito ser mal-humorado. Ache-se superior. "Tá rindo de quê, idiota? Você é cego, não vê a realidade?" Voltamos ao sadomasoquismo. Isso não é aceitável. Precisa ser punido, ou corrigido. Ou tomando distância, ou como fiz com meus filhos: aqui em casa, mau humor sempre foi justa causa para bronca: "Para de desfilar essa tromba e fala logo o que é, droga!" E eles falavam.


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