Folha de S. Paulo


Independência e autonomia

A psicanálise tem uma ideologia? Se ideologia for tomada na acepção de conjunto de convicções, ideais e propósitos, sim, a psicanálise inevitavelmente conterá uma ideologia. A começar pelo nome: análise, em sua origem, significa decompor, separar em partes para examinar; psique é a alma grega, a mente. Em suma: entender como a mente funciona.

Esse "entender" é uma meta ambiciosa: supõe reflexão, introversão, ambição de conhecimento. O que nos leva a Espinosa e seu conceito de liberdade: ela consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam.

Então a psicanálise ambiciona a liberdade do espírito, o pensamento livre. Como consequência, o ser humano livre.

"Mas o psicanalista não deve deixar seu desejo de lado, ao analisar?" Conversa fiada: tal coisa nem é possível, nem desejável. Ele deve sim é ter clareza de seu desejo para que lhe sirva de ajuda, e não de estorvo.

Desejo, sim, para cada cliente que chega o mesmo que desejo para meus filhos, para os leitores desta coluna e para os indivíduos em geral: independência e autonomia, os frutos e a origem da ambição de liberdade. E eu, que sempre vi militância como coisa chata, devo reconhecer que tenho uma: a busca de independência e autonomia.

"E não são sinônimos?" Parecem, mas não são. Independência é não depender, de nada nem de ninguém, só é viável como meta permanente, portanto. Ela, como a liberdade ou o dinheiro, não tem valor em si, mas sim como um bem precioso para ser investido no que desejarmos: "Invisto e perco parte de minha independência, parte de minha liberdade, parte de meu dinheiro, ao criar meus filhos, mas que retorno de felicidade este investimento me traz".

Autonomia, do grego, "regras para si", significa mandar na própria vida, tomar decisões e rumos próprios. Nosso limite é a Constituição: o que não for proibido por lei será de nosso direito fazer.

Só manda na própria vida quem tem independência, e sim, a primeira independência é de dinheiro, pois quem paga, manda. Se alguém paga suas contas, é provável que mande em você, com mais ou menos sutileza. Um profissional autônomo é assim chamado porque seu dinheiro vem de vários "patrões", com consequente menor poder de mando sobre ele. Por esse motivo, vejo a tendência brasileira de ambicionar negócio próprio com muita simpatia.

Então, há uma sequência que decorre daquela ideologia contida na psicanálise: conhecer; entender; libertar; tornar independente; tornar autônomo.

São essas as bases para a construção do indivíduo (o ser separado da massa, "que não pode mais ser dividido"). Ele manda em si e tem direito a ser único, a ser singular, a ser diferente –dentro dos limites constitucionais. O indivíduo é a célula básica da sociedade democrática: é ele, com seu pensamento livre e sua autonomia, que se oporá ao tirano.

Entendo quem tenha como ideologia a anulação do indivíduo, a sociedade de colmeia, das térmites e das formigas. Ter liberdade pode assustar, há quem prefira um Grande Pai. Entendo, mas deploro. Desde que não atente contra as leis democráticas, eu o tolerarei.

Mas, como psicanalista, não posso ajudar.


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