Folha de S. Paulo


Drenar o pus que ameaça a democracia representativa é o papel do Judiciário

"Ah, essa Lava Jato vai parar o país!" Para mim que sou médico essa afirmação faz tanto sentido quanto dizer: "Ah, o cirurgião vai parar a vida do paciente só porque ele está com apendicite aguda".

Sim, em ambos os casos a alternativa é a morte: no segundo, a morte física; no primeiro, a morte moral, a desistência de lutar por um país ético, pela decência, pela integridade de valores prezados.

A metáfora médica se justifica, pois nossa democracia está doente de cinismo, de escárnio, de hipocrisia, de mentira, de distorções do pensamento lógico, doente de falácias que não visam convencer, visam vencer, derrotar e se impor pelo autoritarismo como vemos num doente muito mais grave do que nós: a "democracia" bolivariana da Venezuela.

Voltando à medicina, um princípio que data de Galeno diz: "Ubi pus, ibi dreno" ("Onde estiver o pus, aí se drene"). Um processo infeccioso é contido pelo organismo em um local isolado. Aí combatem os soldados da defesa, os glóbulos brancos, contra as bactérias invasoras.

Os soldados mortos fazem o pus com seus cadáveres, esse pus se mistura às bactérias e formam uma mistura altamente venenosa, fechada naquele tumor. Mas as defesas do organismo não vão segurá-la isolada indefinidamente. Haverá o momento em que a barragem de Mariana se romperá e o veneno se espalhará pelo sangue de maneira fatal. Como impedir que isso aconteça? Drenando obsessivamente o pus do corpo onde quer que ele se acumule.

Essa é a doença de nossa democracia; esse é o brilhante papel que o Judiciário está desempenhando, o de drenar o pus que ameaça matar a democracia representativa.

"Ah, mas aí não vai sobrar nenhum político que nos represente, vão surgir messiânicos salvadores da pátria, vão surgir Bolsonaros, aventureiros como o Collor".

É um risco que se corre, realmente. Mas, estive pensando, se a nossa democracia é representativa, se o poder é para ser exercido por alguém que nos represente, quem me representa hoje? Olhei em volta e vi um deserto de homens e de ideias.

A própria oposição em quem um dia depositei alguma esperança, hoje me parece tíbia e hesitante, quando não francamente idiota, como quando o candidato apareceu com a roupa coberta de adesivos de estatais, para negar sua intenção privatizante em vez de defendê-la.

Que política emergirá da necessária remoção do pus? A antipolítica perigosa? Talvez.

Mas pode surgir a "uberpolítica": lembrei que os motoristas de táxi começaram a se portar bem, a ser educados e atenciosos quando o Uber entrou na competição. Pois então: num clima de honradez, de constante vigilância da população, de repudio à canalhice, com iniciativas populares como a Ficha Limpa e as Dez Medidas Contra a Corrupção em funcionamento, é possível que gente de bem e honrada comece a se interessar em ingressar na política partidária.

É possível que os velhos políticos, mestres em sobrevivência, comecem a se comportar melhor, representando o povo mais que seus interesses.

Hoje, você conhece alguém que te represente por afinidade de valores interessado em ingressar na política?


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