Folha de S. Paulo


Virtude premiada

Minha frase predileta de Freud é: "Enquanto a virtude não for recompensada aqui na Terra, a ética pregará em vão" ("O mal-estar na cultura"). Isso mostra o conhecimento profundo que ele tinha da natureza humana e de sua característica mais preciosa: o altruísmo recíproco.

Sei bem que fomos ensinados que "o bom comportamento se paga em si", que o altruísta verdadeiro nada deve esperar senão o sentimento do dever cumprido. Várias modalidades de ética pregam esse ideal sublime e desinteressado, começando pela cristã e passando pelo imperativo categórico de Kant.

Mas, ainda assim, se examinarmos o "ama o próximo como a ti mesmo", já entendemos que esse altruísmo tem como base o interesse que temos por nós mesmos. Se tomarmos a oração de são Francisco de Assis, o ícone máximo do altruísmo cristão, veremos que ele nos diz que "é dando que se recebe", "é perdoando que se é perdoado". Ou seja, faz o bem esperando retorno, reciprocidade.

Significa que o santo também intuía como a natureza humana funciona: existe em nossas mentes um contador, que, se vê falta constante de retorno, manda sinais de ressentimento.

Portanto defendo que haja lucro na prática das virtudes. Não temos a cultura da doação benemerente, como existe nos Estados Unidos, mas sempre achei justíssimo que o milionário doador de um pavilhão de hospital, de um prédio de universidade, de uma galeria de museu, tivesse seu nome ali registrado: por bom exemplo, sem dúvida, mas também por boa fama e prestígio, que são e devem ser a primeira paga da prática do bem.

Sim, mas isso é a ética estimulando a virtude. Sua outra face é prevenindo o crime e o vício. Claro, se a virtude se mostra recompensadora, ela compete com o vício e o previne. A tradução mais divertida disso é a frase de Jorge Benjor: "Se malandro soubesse como é bom ser honesto, seria honesto só por malandragem". Mas, para funcionar, a ética precisa de que nossos atos tenham consequências e que nossos delitos tenham punição: a impunidade corrói a ética.

Por fim, penso em como ser ético depois do delito cometido. E sou remetido à lógica do perdão dos pecados, aprendida no santo Inácio com os jesuítas: era preciso arrepender-se e penitenciar-se no confessionário. É certo que o arrependimento não nos livrava apenas da culpa, mas também, ou principalmente, do medo do inferno. Era, portanto, um arrependimento interessado, com retorno, como o altruísmo recíproco.

Partilho aqui as reflexões que me foram despertadas pela questão da ética das delações premiadas: elas seguem a lógica do arrependimento. A pessoa está diante do dilema: seu crime não é solitário; para que seja reparado, ela precisa deixar de ser cúmplice; ou torna-se fiel à sociedade ou segue fiel aos outros criminosos, não há terceira hipótese. Madame disse que não respeita delatores, mas então quem ela respeitaria? Os mafiosos que se mantivessem fiéis à omertà (código de honra da Máfia)?

Se o criminoso resolve ser fiel à sociedade, ainda que seja por medo, essa sua tardia adesão à ética precisa se tornar um caso de virtude premiada.

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