Folha de S. Paulo


Compaixão e consideração

Ele estava horrorizado consigo mesmo: a criança morrera de câncer e ele, o pediatra, não sentira nada. "Eu tenho alguma coisa de muito errado na minha cabeça: não tive pena, não sofri, não perdi o sono..."

Quis saber se ele havia feito tudo o que podia, se tinha apoiado os pais nas horas difíceis, se havia minimizado o sofrimento da criança, enfim, se honrara seu juramento hipocrático. "Sim, claro, como sempre, mas essa não é a questão..."

É, eu sei, mas ética e compaixão são coisas diferentes, o "prima non nocere" (antes de tudo, não causar dano) é nosso norte de médico, e agir para o bem é o outro lado da mesma moeda ética.

Agir e sentir são coisas diferentes: para a ética acontecer, basta o primeiro. Para que a ação aconteça, é preciso haver consideração. Compaixão é um bônus, é para quem pode, não para quem quer. Bem-vindo ao estranho pensar do obsessivo que, além de fazer tudo certo, ainda se cobra a perfeição de ter as emoções esperadas, coisa que frequentemente lhe é vedada.

Mas para ter consideração não é preciso compaixão? Não! São coisas completamente diferentes. Compaixão é sofrer junto: cum + passio. É curioso que a origem latina de paixão só admita uma tradução: sofrimento (mas faz sentido...). É por isso que a "paixão de nosso senhor Jesus Cristo" não se refere a Maria Madalena, mas ao sofrimento dele no Calvário. A palavra de origem grega com o mesmo significado é simpatia: sin + pathos.

Se você é, para além de entender, capaz de sentir em si o sofrimento do outro, você é capaz de compaixão.

"Consideração" tem uma origem engraçada: exame cuidadoso dos astros. Herdamos muita coisa da antiga astrologia: "desastre", por exemplo, é má configuração dos astros.

Para o caso em questão, consideração é ter o outro dentro da sua cabeça, saber dele, entendê-lo, ou entender seu sofrimento, mesmo sem senti-lo. O pediatra agiu com consideração, mesmo sem compaixão.

Um teste de consideração acontece quando você ganha um presente: se ele não tem nada a ver com você, ou com o que você gosta, fique sabendo que quem o deu não tem você dentro da cabeça. Chato, né?

"E essa história do obsessivo não ter facilidade de sentir emoções? Os obsessivos são frios?", perguntou o pediatra. Não é isso, o problema deles é sua obsessão por controle e pureza: um obsessivo lida mal com sentimentos contraditórios, com a ambivalência.

Pais obsessivos atendem perfeitamente bem um bebê que chora de madrugada pela terceira vez, mesmo se eles têm de acordar cedo para o trabalho. Só não sabem amar numa hora e ter raiva noutra, e dificilmente um pai, sendo acordado nessa situação, irá atender a criança transbordando de amor.

Como resultado, e sem ser de propósito, bloqueiam os dois sentimentos. Por isso, ser pai (ou mãe) é principalmente produzir amor: cuidar, zelar, nutrir, aquecer, educar, atender, estar sempre pelos filhos.

Exatamente o que fez o pediatra com seu bom trabalho. Ele é um monstro? Claro que não. Só é, como eu, mais um condenado da obsessividade.

É por isso que obsessivos não choram em velório de parente. Mas, já com um comercial de TV...

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