Folha de S. Paulo


A nobreza do martírio

Você já notou que essa história de oferecer a outra face é um golpe baixo? O que acontece é que o estapeado vira nobre instantaneamente, e quem deu o tapa vira vilão.

Aquilo que gerou o primeiro tapa desaparece como assunto, mesmo que, dependendo da causa, ele seja merecido.

Sentir-se nobre de espírito exerce uma atração poderosa sobre nós, já que se trata de um dos traços da proeminência social (riqueza; beleza; elegância; autoestima elevada; fama, mesmo má; poder; sabedoria; cultura; senso de humor, são alguns outros). Ela equivale às penas do pavão, crucial para sermos escolhidos na seleção sexual da espécie.

Mas é uma qualidade difícil de ser construída. Requer generosidade, consideração, cultivo de valores éticos/estéticos, compaixão. Ou seja, artigos escassos no atual mercado.

Não obstante, existe sim um meio fácil de se sentir nobre: o martírio. Considere a quantidade de homens, mulheres e crianças que andam se imolando pelo Islã, explodindo-se e aos cães infiéis: são (ou se consideram) mártires da causa, e creem que serão imediatamente transportados ao paraíso muçulmano, que, diga-se, é um sucesso de marketing se comparado ao tédio do paraíso cristão.

Mas não precisamos ir tão longe para contemplar o uso político do martírio. Pense em Madame, que alardeia ad nauseam sua condição de ex-presa e torturada, uma quase mártir da luta pela democracia. O fato de que ela e de que todos os que se engajaram na luta armada desejavam uma outra ditadura que não a militar, a ditadura do proletariado, é sempre convenientemente esquecido. O que importa é a nobreza do martírio.

Aqui é necessário fazer uma distinção entre o mártir e o coitadista. O primeiro "sofre em silêncio" a dor de sua causa nobre. De fato, alardear sua condição tira muitos pontos de seu valor. O segundo faz campanha e uso escancarado de seu lugar de prejudicado, e tenta de todos os modos deixar os demais culpados por sua desdita, de modo a lucrar com aqueles idiotas que acreditarem que devam indenizá-los. É um cafetão de sua própria miséria. E dela não abrirá mão, mesmo que lhe ofereçam uma boa saída, já que dela vive.

Num lugar intermediário mora a vítima, ou melhor, aquele que se faz de vítima. E aí voltamos ao começo deste texto: a condição de vítima absolve completamente a pessoa de qualquer crime, já que é impossível ser vítima e criminoso ao mesmo tempo. A propaganda que a vítima faz de seu sofrimento tem graus variados de sutileza, não pode ser muito grosseira, pois as pessoas já reconhecem a chantagem emocional. Ela será mais eficiente quando silenciosa, sobretudo se for comunicada por suspiros e ares resignados. Isso não te soa "familiar"?

Mas tem o mesmo objetivo do coitadismo: lucrar com o sentimento de culpa dos outros. É mesmo uma forma sutil de sadomasoquismo: "Eu sofro sim, mas o outro será visto como um filho daquela senhora de vida airada".

As pessoas que se empenham em buscar o papel de mártires (ou dar essa impressão) estão deixando de lado o cultivo trabalhoso da nobreza de espírito. Para pegar o atalho de uma nobreza que sempre me desperta suspeitas.

www.franciscodaudt.com.br


Endereço da página: