Folha de S. Paulo


Consolo

Diferentemente de necrotério (lugar dos mortos, em sua origem grega), cemitério é o lugar para dormir. O de nome mais bonito que conheço é o Cemitério da Consolação: lugar para dormir, lugar de consolo. Reúne duas necessidades básicas do ser humano neste vale de lágrimas: descansar e consolar-se.

As religiões são um produto natural deste anseio da espécie: elas nos consolam negando a morte (veja que no cemitério se dorme, não se está morto) e nos dando amparo do transcendente forte, um ser maior que nos protege.

E quem, como eu, não tem religião? Como faz para se consolar do desamparo e da solidão a que estamos condenados? Já estava no caminho de encontrar algo útil, não um transcendente forte acima de mim para me subjugar e a quem servir, ou para a ele me agarrar com unhas e dentes, mas de uma referência-ferramenta para enfrentar a pedreira existencial, quando esbarrei com Boécio e o consolo da filosofia.

Ele foi um romano do século 6º, preso injustamente e sentenciado à morte, que escreveu na prisão esse belo livro ("De Consolatione Philosophie") em que registra sua conversa com as musas da filosofia, buscando com elas entender o sentido de sua prisão e de sua condenação à morte. É uma linda metáfora para a própria vida, se lembrarmos daquela sua definição: a vida é uma doença sexualmente transmissível, com 100% de fatalidade.

Pois venho conversando com elas, as filosofias, e o que tenho ouvido delas me é de grande consolo. Primeiro foi a escola grega dos estoicos. Êta gente mal compreendida. No senso comum, são pessoas "que sofrem em silêncio". Não! Um estoico é alguém que simplesmente aceita a realidade que não pode ser mudada. Você nunca verá um estoico se queixar da chuva. E, se ele tiver perdido uma perna, fará tanto sentido se queixar de que tem uma só perna quanto faria para mim me queixar porque tenho duas: minha realidade é ter duas, a dele é ter uma. Mas um estoico não é cego às possibilidades de mudar a realidade incômoda: se ele souber de uma boa prótese no mercado, irá atrás dela.

Depois foram os céticos. Esses buscadores do conhecimento ("episteme") reconhecem que sua procura não tem fim, já que não chegam a nenhuma certeza absoluta, e sim a verdades funcionais. Não é aquela coisa pós-moderna de "toda verdade é relativa". Não. Existem verdades que fazem um avião voar, e fora delas existem desculpas. Na base aérea Edwards da Califórnia há uma placa que lembra: "Desculpas não voam".

Dentro da escola dos céticos, amo os agnósticos: são os que se declaram incapazes de conhecer um determinado assunto. Não confundir com os ateus ("sem deus"), pois estes têm uma arrogante certeza absoluta da inexistência de Deus.

Basicamente, eu, agnóstico, digo: se não consigo o conhecimento disso, isso não me servirá como referência de vida. Quanto a isso, Deus e a física quântica se equivalem: não consigo o conhecimento, não me servirão como referência de vida.

Preciso de referências. Minha bronca com o pós-modernismo é tê-las detonado. Ouvi de uma cliente uma pergunta cômica: "Ué, o pós-modernismo já não saiu de moda?"

Vai ser pós-moderna assim...

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