Folha de S. Paulo


Busca-pé

Não entendi quando ouvi dizer que "o hermetismo é o transcendente forte da cultura francesa pós-moderna". Mas não me preocupei: a ignorância curiosa é a mãe do conhecimento. Tudo o que precisava era perguntar e pesquisar. Já sabia que hermético e esotérico são quase sinônimos de "compreensível para poucos". E o transcendente forte? E a pós-modernidade?

O primeiro era um conceito de Deleuze, francês hermético por excelência. Já que o esoterismo me irrita, eis o que entendi, ao buscar a transparência:

O transcendente forte equivale a essas alças no teto dos ônibus, em que as pessoas se seguram para não cair. Algo maior do que elas e que lhes transmite segurança, algo a que é preciso se aferrar com todas as forças, pois lhe é atribuído um poder maior que todas as forças, e quem nele se segura estará encostado nesse poder.

É bom compreender o primeiro antes do segundo, que fala do pensamento que foi regente de épocas históricas.

No pré-modernismo (Idade Média), o transcendente forte era Deus. A algaravia estética do barroco é apenas aparente: ordenando-a havia o olhar divino. Não há exemplo melhor do transcendente forte do barroco que a colunata de Bernini da praça São Pedro, em Roma: ela parece um paliteiro desordenado para quem passa, mas existe um só lugar na praça em que elas se alinham como únicas à vista do observador que lá está. Esse é o lugar em que Deus quer que você esteja! Eis o conceito máximo do barroco e do pré-modernismo: se você estiver no lugar em que Deus quer que você esteja, então tudo fará sentido.

Depois veio o modernismo, fruto da Renascença, do iluminismo e do humanismo, Deus cede lugar ao homem e à razão: eles são o novo transcendente forte, a ciência, a enciclopédia classificando o saber, a taxonomia, a ordem racional, o museu organizado em setores homogêneos. O homem Narciso se deslumbra consigo mesmo. Este é o conceito máximo do modernismo: se você estiver no lugar em que o homem, a ciência e a razão querem que você esteja, então tudo fará sentido.

A partir do século 19, seu narcisismo será ferido de morte. A Terra já não é mais o centro do universo (Copérnico); o homem vira primo do macaco (Darwin); e, pior, existe um inconsciente que o manipula, ele não manda nem no seu próprio quintal (Freud).

É quando Nietzsche afirma algo como "Deus morreu, e o homem não está com essa bola toda, não". Adeus, era moderna. O pós-modernismo se apresenta. Perdido Deus, perdido o transcendente forte do homem-razão, começa a era do busca-pé. Tal qual o fogo de artifício, a cabeça diante dessa perda rodopia em desespero à busca de um pé para se sustentar. O homem corre atrás de si mesmo, da irrelevância, do "é proibido proibir", mas nada o tranquiliza, nada é forte o bastante.

É quando aparece o fascismo, o stalinismo, o nazismo, o Estado Islâmico, o velho pai da pátria, o líder populista a dizer "Eu vim para te salvar!"

Os pobres de espírito, sedentos e cansados de buscar um pé que os sustente, encontram o Messias. A partir daí, não há razão que os demova. Não há razão: contra argumentos não há fatos. E voltamos à idade das trevas...

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