Folha de S. Paulo


Acumuladores

Os canais pagos de televisão tornaram bastante conhecida a figura do acumulador. Programas americanos mostram acumuladores ricos, capazes de comprar galpões para guardar de quinquilharias a compras múltiplas ainda em suas embalagens originais. Há até acumuladores de carros, com dezenas deles espalhados por sítios, cada um com uma razão para não se desfazerem deles.

Afora as histórias sinistras de pessoas sepultadas pelos labirintos de jornais acumulados, que sobre elas desabaram, e que são descobertos já em esqueleto, pois o cheiro da podridão não foi distinguido do cheiro que já havia antes, de anos de podridões acumuladas (ou você pensa que alimentos e excrementos eram eliminados de maneira civilizada?), há acumuladores tão doentes quanto esses, mas que escapam à nossa percepção por seus vícios serem incomuns.

A acumulação é parte dos vícios, males obsessivo-compulsivos. Há um famoso estudo de Harvard que acompanhou a vida de 400 de seus alunos para entender o alcoolismo, hábito e vício. Acompanhou-os por... 60 anos! Três gerações de pesquisadores.

A conclusão, em resumo, é que o vício é o hábito que prejudica os principais interesses da pessoa. Bebe diariamente sem estragos? Hábito. Bebe uma vez por mês e bate na mulher? Vício. O mesmo se aplica para distinguir as acumulações das coleções. A obsessividade é fruto de um programa inato que temos para dar ordem e fazer sentido a tudo que conhecemos. Ela é um bem precioso que nos ajuda a sermos corretos, pontuais, honestos, fazer bem o que fizermos, a classificar dando prioridades, arrumar, deixar limpo etc.

Mas, quando descamba para a doença, pode se tornar um pesadelo: a ambição de ter tudo sob controle, o delírio de se acreditar na pureza imaculada, ou ambos. Claro, a acumulação tem a ver com o controle de não perder nada, de tudo estar à mão (tudo, de um universo particular criado pela pessoa).

E se aplica a coisas bizarras como a usura, acúmulo de informações, o combate à solidão, a erudição, a obesidade mórbida e a anorexia nervosa. Aquele que tornou a poupança num vício sovina sofre com cada centavo que gasta, como se perdesse um pedaço de seu corpo, enquanto goza com cada moeda em seu cofrinho, sua ilusão de controle absoluto.

A internet fez a felicidade do acumulador de informação, que antes só assinava e lia 20 jornais. Agora ele também tem acesso a centenas de links, que levam a outros milhares, e sua vida se consome nisso. Ah, as redes sociais permitem a acumulação de "amigos", de "likes", de seguidores, na ilusão de ser amado, às custas de não ter uma vida para viver.

O erudito acumulador, que se gabava de ter lido a Britannica de A a Z, hoje pode acumular infinitas citações: ambiciona saber tudo e nunca ser pego de surpresa na ignorância de algo. Também não tem ideias próprias, só cita outros, sua mente se parece um museu de aves empalhadas: são belas, mas inférteis. Alguns anoréxicos contabilizam cada caloria que deixam de ingerir. Cada dia menos. E gozam com sua poupança. Alguns obesos mórbidos não deixam escapar nada.

Controle! Tudo sob controle!

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