Folha de S. Paulo


Politicamente correto

Chamar urubu de "meu louro" é uma espécie de selo da loucura, ficamos tontos, não entendemos mais nada, perdemos o chão e as referências.

Mas, quando as distorções das palavras fazem parte da "novilíngua", devemos nos lembrar do conselho que Polônio deu ao rei Cláudio, padrasto de Hamlet: "Majestade, essa loucura tem um método".

"1984", romance de George Orwell, descreve uma sociedade totalitária onde todos eram vigiados pelo Big Brother (daí o nome do programa), a história era constantemente reescrita segundo a conveniência dos poderosos, o povo era conduzido a se unir pelo ódio a um inimigo comum (a elite branca da época), e as palavras, através do ministério da propaganda, ganhavam novos sentidos que confundissem as mentes, que impedissem a clareza de pensamento, que levassem a uma crença única, o amor obediente ao Grande Irmão. Era a novilíngua.

A coisa está se parecendo levemente familiar? É, e eu, em defesa da saúde mental pública, tenho dedicado várias destas colunas a decifrar o sentido original dos termos da novilíngua atual. Ora, "contabilidade criativa", "recursos não contabilizados", "malfeitos" e "aloprados" são de fácil tradução: trapaça, caixa dois, crimes e criminosos, respectivamente.

Mas, depois de decifrar "burguês" e "conservador", chegou a vez do "politicamente correto".

O que querem dizer essas expressões, "politicamente correto" (PC), e "politicamente incorreto" (PI)?

Politicamente correto é entendido como "o que não ofende os fracos e oprimidos, tudo que for progressista e de esquerda". Politicamente incorreto, por oposição, é "ofensivo, opressivo, conservador e de direita".

Mas, será mesmo? Vamos ao bê-a-bá da coisa. Politicamente: o que se refere à política; de maneira política. Ora, política é o nome que designa a correlação de forças entre pessoas que passaram a viver juntas na Polis, a cidade-Estado grega, há 2.400 anos. Antes não havia política, pois, sem a Polis e suas leis, as diferenças eram resolvidas na porrada, no assassinato ou na guerra.

Então, "politicamente" significa "da maneira que a correlação de forças entre pessoas diferentes se dá, dentro da Polis". Nela, essas diferenças não podem mais ser resolvidas com dedo no olho, golpe abaixo da linha da cintura e assassinatos. As diferenças têm que obedecer a lei, e o debate civilizado substitui a força. Se as coisas ficarem mal paradas, e a conversa não dá mais conta, o Estado é acionado para aplicar as leis, até, se necessário, com uso da força.

Então, politicamente correto é o embate de diferenças que acontece obedecendo às leis democráticas do Estado.

Já o sentido atual de politicamente correto, que é o domínio de uma única maneira de pensar, a "correta", com o patrulhamento de qualquer desvio, de qualquer diferença, simplesmente acaba com a política: sem diferenças não há debate.
É este o método da loucura, da novilíngua, da lavagem cerebral que é a patrulha do "PC" (agora, entre aspas): estão querendo nos dominar!

O mais engraçado é que, uma vez que debato civilizadamente minhas ideias, me descobri politicamente correto.

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