Folha de S. Paulo


Psicanálise e política

A leitora reclama que ultimamente só tenho escrito sobre política, que ela gosta muito dos meus escritos sobre psicanálise, que recomenda meu livro sobre educação de filhos ("Onde foi que eu acertei", pela Casa da Palavra), e que, por favor, retome meu rumo.

Diz a piada que o pai gaúcho aconselhou ao filho: "Na vida, filho, tu traça uma meretriz e segue essa meretriz sem dela se desviar". De fato, tenho uma diretriz ético-estética traçada em minha mente que me serve de farol-guia, é meu oriente, meu norte, minha bússola, e, expliquei para a leitora, não posso retomar meu rumo, porque dele nunca me desviei.

Primeiro vamos entrar em acordo sobre o significado de política. Ela, desde a pólis grega onde foi conceituada, é o embate de forças muitas vezes divergentes que resulta nos rumos da governança, na prática das escolhas do dia a dia. Veja só como essa definição se encaixa perfeitamente com aquilo que se passa dentro da nossa cabeça, e que é objeto de estudo da psicanálise: o paciente quer ser feliz, mas suas escolhas só o conduzem ao sofrimento, ele não entende o porquê.

É evidente que forças ocultas atuando em sua mente sabotam seu projeto deliberado. É missão do psicanalista procurar entender que forças são essas, baseado na premissa de Spinoza ("a liberdade consiste em conhecer os cordéis que nos manipulam"). Então existe uma política dentro da mente, forças divergentes produzindo resultados desagradáveis, e até patológicos.

Mas deveria o profissional se ater aos acontecimentos mentais e desprezar o entorno do paciente? Só se ele desprezasse a bela definição de ser de Ortega y Gasset ("Eu sou eu e minhas circunstâncias"). A leitora recomenda meu livro sobre educação de filhos? Do que trata ele senão da política familiar, tendo como "meretriz" a formação de indivíduos íntegros e independentes?

Pais culpados perdem autoridade, força política crucial na educação dos filhos, que se transformam em pequenos tiranos mimados, futuros adultos infelizes. Ah, então a culpa é uma poderosa força política, não só dentro de nossas mentes, mas dentro da educação (o "coitadismo" é sua expressão social).

Deveria eu, então, parar por aí? Mas como, se nossa vida sofre influências tremendas da sociedade em que vivemos?

Um "pequeno" exemplo: o Plano Real restituiu uma noção de valor, ao acabar com a hiperinflação. Antes não se sabia se algo era caro ou barato, pois seu preço poderia variar para mais de 80% num único mês. Era um desrespeito e uma injustiça terrível com os mais pobres, que não podiam ter dinheiro investido, então a moeda estável tem uma força de restituir valores éticos, não apenas monetários.

Dessa forma, para poder seguir minha diretriz ético-estética de estabelecer uma democracia dentro da cabeça do paciente, com direito a informação livre das forças que sobre ele operam, tenho que atuar em favor do meu ideal, tanto no consultório quanto no que escrevo e no que digo em público: a política permeia tudo, portanto psicanálise é análise política.

A propósito, das duas, uma: ou agora a elite branca é metade do país ou tem muito pobre por aí querendo mudança.


Endereço da página: