Folha de S. Paulo


Religiões singulares

Meu filho, apresentado aos dez mandamentos no primário do colégio católico, trouxe-me uma questão interessante: "Pai, vi um que mandava honrar pai e mãe, mas não tem nenhum mandando honrar filho e filha, por quê?" Algum tempo mais tarde, veio outra: "Cristo morreu na cruz para nos salvar exatamente do quê?"

Nada como ter um aprendizado sem a reverência do inquestionável (porque sagradas são as Escrituras) para refletir sem medo.

Se vantagens há nas religiões formais, é que seus ensinamentos e dogmas são explícitos e a eles adere quem tem o dom da fé. Quem não o possui pode pensar sobre eles e tentar compreender o que contêm, como fiz com Guilherme sobre a diferença de honras e a salvação.

Mas mesmo aqueles que se dizem ateus ou agnósticos podem carregar uma religião particular cheia de dogmas a lhes dirigir os atos, de maneira inconsciente. É o caso dos neuróticos e de portadores de outros distúrbios de comportamento que, por sofrerem com eles, acabam chegando ao consultório de um psicanalista. É minha função decodificar essas crenças ao ponto de torná-las explícitas e assim permitir que os pacientes reflitam sobre elas, rejeitando-as se elas aparecem tão injustas ou distorcidas ao ponto de se tornarem invasões nas vidas deles. É isso que Freud quis dizer ao anunciar a intenção da psicanálise: "Onde houve o Id, que haja o Ego" (atendendo minha vontade de eliminar jargões, traduzo: "Em vez de crenças inconscientes me manipulando, que eu assuma a direção de minha vida").

O senso comum infiltra a maioria dessas crenças desde a mais tenra infância, que é quando, por razões de sobrevivência, estamos mais propensos a absorver como verdade qualquer coisa que os mais velhos nos digam. Como exemplo, a cada vez que alguém me diz que "meus pais eram de origem humilde" ou "modesta", pergunto se eles tinham, de fato, as virtudes da humildade e da modéstia, ou se simplesmente eram pobres. Sim, porque já vi muito rico humilde e modesto e muito pobre presunçoso e arrogante.

Pego este exemplo em particular porque vivemos um tempo em que o lulo-petismo apostou nessa crença ao dividir o país entre ricos malvados (a tal da "elite branca" da qual faço parte, mesmo sem ser "louro e de olhos azuis", o cúmulo do demônio, nos impunes dizeres racistas do ex-presidente) e a santificação dos pobres, sobretudo se de "movimentos sociais". Eis aí um exemplo de como a crença infantil do senso comum pode manipular, não só a vida de alguns, mas a disposição de espírito em direção ao ódio de um país inteiro.

É essa a pior herança maldita de nossos tempos.

Outra: fui dizer na TV que não gostava de bichos (veja, não disse que os maltrato ou coisa assim, simplesmente que não acho graça neles) e choveram insultos contra mim, dirigidos à emissora e à minha caixa de contatos. Entre os mais brandos, que eu era frio, cruel, "da banda podre da humanidade"! Há uma religião de adoradores de bichos fofos (porcos e frangos não se habilitam –seus cadáveres vêm do supermercado), ela é fundamentalista e eu não sabia...


Endereço da página: