Folha de S. Paulo


Desconfiança

Devemos nossa consciência de existir a ela, dizem os psicólogos evolucionistas. Houve uma vantagem evolutiva para nossos antepassados capazes de olhar para o outro com quem lidavam, e pensar: "Esse cara está com aquele jeito que eu faço quando quero passar a perna em alguém, devo desconfiar dele". Essa atitude reflexiva era o embrião de consciência de si mesmo brotando. Foi assim que o Homo sapiens (homem que sabe –e que desconfia) prosperou. Foi daí que nós viemos.

As cidades-estado já existiam por 8.000 anos quando, em Atenas, alguns se cansaram da forma de governo única até então, a Tirania, e disseram, "se somos nós que sustentamos o governante, com nossos impostos, por que temos que aceitar seu poder absoluto? O poder que ele tem vem de nós, o povo, logo, nós passaremos a aceitá-lo, ou rejeitá-lo se ele não se comportar bem".

Assim nasceu a primeira experiência de democracia (o poder do povo), há 2.500 anos. Seu poder maior era expresso quando alguns desconfiavam que um governante estava querendo se tornar um tirano. Nesta hora, a assembleia de cidadãos se reunia e punha a desconfiança em votação. Se a maioria endossasse essa desconfiança, através de registrá-la dentro de uma ostra (a cédula de votação), o governante era expulso de Atenas, mandado para o "ostracismo".

A democracia é, portanto, a forma de governo em que o pagador de imposto tem o direito de desconfiar do governante. Desconfiança é, de fato, nosso principal direito, pois a tentação de tirania é constante no ser humano. Se não for bem vigiada, ela toma conta.

Suponha que um cidadão ateniense fosse falar para todos em praça pública algo como: "Se Péricles continuar no comando do governo, nossa economia vai pro brejo!". Suponha também que Péricles, ofendidíssimo, resolvesse perseguir aquele cidadão.

Imediatamente surgiria a desconfiança de que Péricles estava com jeito de tirano, e a assembleia seria convocada para votar sua desconfiança nele. Mas Péricles não se metia a besta, pois sabia correr o risco de ostracismo. E se comandasse a economia ateniense de forma desastrosa, também corria risco de ostracismo por má gestão.

A desconfiança de tirania está presente nas democracias modernas, que buscam aperfeiçoamentos. Um deles foi a divisão dos poderes em três casas distintas: uma gerencia (Executivo), a segunda faz leis (Legislativo) e a terceira zela para que as leis não sejam abusivas (Judiciário).

Mas a principal função dos poderes separados sempre foi que um desconfiasse permanentemente do outro, por saber da tentação de tirania que todos temos. "Ei, o Executivo está subornando o Legislativo para tê-lo no bolso e dar vazão a seu desejo de tirania!" O judiciário é acionado para cortar as asinhas dos candidatos a tirano. O papel da desconfiança se cumpre.

Na Grécia só havia o voto de "recall", recolher o dirigente que caíra em desconfiança. Nós não o temos, apesar de haver projetos dessa lei, mas (por que será?) não avançam.

Só podemos exercer o voto de desconfiança a cada quatro anos.

É agora, em outubro.

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