Folha de S. Paulo


O bicho humano

Malleefowl é uma galinha australiana espantosa. Ela nasce de uma chocadeira cavada na areia pelo macho, que fica por perto tomando conta. Quando o pintinho aparece, nem o macho nem a fêmea tomam conhecimento dele, nem vice-versa. Em uma hora suas penas estão secas, ele dá uma corridinha e sai voando para nunca mais voltar.

Esse animal notável nasceu com TODOS os softwares e conhecimentos que precisa para viver. Comer, fugir, se acasalar e fazer nova chocadeira. Ele nunca precisou de adultos que lhe ensinassem qualquer coisa. Nem de pai, nem de mãe.

O bicho humano é seu completo oposto. Nenhum mamífero nasce tão dependente de adultos como nós. Nascemos tão prematuros que precisamos de transporte ao seio para mamar, enquanto os outros se mexem até lá. Essa prematuridade faz com que, não apenas nosso convívio e aprendizado com os adultos seja longo ("Filho meu, eu só crio até os 48 anos, depois é com ele", dizia Tom Jobim), mas também marcado pelo prolongamento das funções de mãe (uma continuação do ventre, dando calor, alimento e proteção), e uma função de pai (atender suas crescentes capacidades, partejar o filho de sua mãe-chocadeira em direção à autonomia).

No melhor dos mundos, as funções de mãe, o atendimento de suas necessidades, iriam diminuindo à medida que capacidades fossem aumentando, apoiadas pela função de pai (se o filho sabe andar, não precisa ser levado no colo; se sabe mastigar, não precisa de mamadeira etc.). O humano em criação (criança) em breve seria capaz de se prover de calor, alimento e proteção, e sair do ninho voando para o mundo.

Na prática as coisas não se passam assim. Imagine-se a complexidade de atender bem esse conjunto de necessidades e capacidades que variam a todo tempo pelo resto da vida, se é que os adultos responsáveis pela criação têm a habilidade de entender uma criatura que, de início, só se comunica pelo choro, ou interesse ou paciência para mergulhar no investimento brutal que essa criação demanda.

Resultado: gente grande muito, muito atrapalhada. Ora incapaz de autonomia, ora pedindo colo pelo resto da vida (as drogas são colos químicos). Adultos que voam tranquilos e autônomos? Hum... A regra é a turbulência. Isso quando decolam.

Mas, se nos faltam softwares de Malleefowl, os nossos de APRENDIZADO são assombrosos. O mais precoce deles passa despercebido, mas será tão importante pelo resto da vida que a espécie deveria, em vez se chamar SAPIENS ("que sabe"), ter o nome de HOMO MERCATOR ("que negocia").

Nossa primeira moeda de troca: o bebê sorri para o adulto que lhe agrada, e o adulto se derrete. Donde, ele aprende a agradar para ser atendido.

Todas as negociações ao longo da vida estão resumidas na primeira. Passamos o tempo todo negociando o que nos interessa em troca do que interessa ao outro, através do altruísmo recíproco, nosso melhor programa: eu faço bem em troca de receber bem.

Nossa espécie pode seguir criança em seu melhor sentido, apegada a brincar, ter curiosidade, e a aprender pelo resto da vida. Gosto disso.


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