Folha de S. Paulo


Estado laico?

As religiões se parecem com aquelas alças em que os passageiros de ônibus se dependuram por segurança. Uma canção religiosa diz isso mesmo, "segura na mão de Deus e vai".
De fato, ter fé é um dom reconfortante para quem o recebe e dispensa a cabeça de muita gente de grandes esforços de questionamento, de planejamento e mesmo de pensamento. A "Força Maior" cuidará e proverá.

Dúvidas? Está tudo escrito no grande livro. Como interpretá-lo? Os fundamentalistas resolvem a questão tomando-o ao pé da letra. Os xiitas delegam esse trabalho aos aiatolás e "seguram na mão" deles. Fatos chocantes, o mal sobre a Terra? Mistério. Os desígnios de deus são insondáveis, não cabe a nós questioná-los. Estava escrito.

Mas aprendi com João Paulo 2º que existe a religião dos simples e das crianças e a religião dos que pensam por si. E uma dessas pessoas foi minha mãe.

Ela, com 90 anos, ficou intrigada quando eu lhe disse que, mesmo católica devota desde sempre, havia se tornado protestante na velhice. "Como?", quis saber. "É que você acha que pode aceitar umas coisas ditas por Roma e rejeitar outras. Ora, isso foi exatamente o que Martinho Lutero fez". Ela me dispensou com um gesto: "Ora, meu filho, ninguém fica criança para sempre, e se a velhice tem alguma vantagem, é que a gente perde o medo".

Sinto discordar dela, mas a maioria da humanidade permanece criança pela vida afora, a aceitar sem questionamento o que os grandes falam. Essa é a força das religiões.

Aqui preciso explicar uma diferença cultural entre os bairros da Tijuca e os da zona sul do Rio. A Tijuca é uma conservadora escancarada. O menino desenhava na sala quando seu pai tijucano passou, olhou e disse: "Para de desenhar, que isso é coisa de veado". Na zona sul, cena muda, a reprovação seria silenciosa. O menino ficaria com a sensação de estar fazendo uma coisa errada, mas sem saber bem o quê. Em matéria de controle do pensamento, a sutileza dá de dez!

Até a Revolução Francesa, Estado e religião eram uma só coisa, o rei era indicado por Deus, sem discussão. Se algum bem resultou daquele terror todo esse foi a invenção do Estado laico para cá, religião para lá, e um não se meteria no outro.

É claro que existem os Estados islâmicos, que são religiosos. "Tijucanamente" religiosos, eu diria. Declaradamente religiosos.

Mas... e se um grupo de poder quisesse ter o mesmo domínio e controle do pensamento da população que um Estado religioso tem, sem se proclamar como tal e passando-se por democrata, defensor da liberdade de pensamento e do Estado laico, que estratégia adotaria? Certamente não a da Tijuca, já que a da zona sul dá de dez e ninguém percebe.

Que tal ir insinuando uma patrulha de pensamento chamando-a de "politicamente correta"? Que tal usar o sentimento de culpa e o pecado de pensamento? Que tal se arvorar como pai protetor dos "injustiçados"? Que tal dividir o país entre fiéis e infiéis, entre os maus e os bons? Que tal usar todos os instrumentos de domínio da religião sem chamá-la de religião? Teríamos um Estado laico?


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