Folha de S. Paulo


O que nos leva a crer

O filósofo John Searle perguntou certa vez a Michel Foucault por que seus escritos eram tão obscuros, se ele era tão compreensível na conversa. Foucault respondeu que 25% de um texto precisavam ser de um nonsense incompreensível para que fossem levados a sério por filósofos franceses [extraído de artigo publicado na eSkeptic].

É claro que me lembrei da vergonha de não ter entendido algum texto ou palestra, e o medo de dar isto a perceber e, em consequência, ser considerado burro.
O mesmo se passava com as intervenções enigmáticas de meu psicanalista. Causavam-me perplexidade, e eu ficava dando tratos à bola para saber qual o significado oculto daquele oráculo.

O pior era que às vezes eu achava que tinha entendido. E ficava maravilhado com minha descoberta: havia-me sido tão custosa que só podia ser verdadeira. Meu esforço de interpretação me levava a crer em sua veracidade.

Lembrei-me depois de uma afirmação de Lacan que se encaixava perfeitamente na minha experiência como paciente: "Em nenhum caso uma intervenção psicanalítica deve ser teórica, sugestiva, quer dizer, imperativa; ela deve ser equívoca. A interpretação analítica não é feita para ser compreendida; ela é feita para produzir ondas."

Esse tempo de ter medo de que me achassem burro já passou há muito. Ele foi substituído por uma irritação com qualquer texto metido a besta, que contenha obscuridades em geral, e esoterismos (no sentido de "conhecimento para poucos") em particular.

Seja como psicanalista, como escritor, enfim, como eu (ego), a clareza e a transparência tornaram-se um farol guia para mim.

Se o que digo não for entendido, a culpa é minha, que não me fiz claro o bastante.

Fui vendo, com o tempo, que há artifícios, verdadeiros truques -como esse de ser incompreensível-, que não têm nada a ver com a lógica que nos convenceria da veracidade de alguma afirmação ou tema, mas que lhes dão uma aparência grandiosa, causando em nós uma impressão de tamanha importância que acabávamos por aceitar a coisa como verdadeira.

Outro truque é a tal da "sabedoria milenar". As pessoas dizem, "se esse saber atravessou os tempos, deve ser verdade".
Pois eu digo, se ele atravessou tanto tempo sem se alterar, sem ser modificado pelo questionamento, deve ser dogma ou tabu. É algo protegido pelo sagrado ou pela fé.

As Escrituras, a astrologia e a medicina chinesa são exemplos.

A história do que fazer com o lixo nuclear é fascinante. "Vamos enterrá-lo e deixar avisos para ninguém chegar perto". Mas, que linguagem duraria 10.000 anos (o tempo de perigo radioativo)? Só uma, concluíram: o tabu religioso.

Outro artifício é o argumento de autoridade: "Roma locuta, causa finita" (Roma falou, questão encerrada). Nicolás Maduro afirma se comunicar com Hugo Chávez por meio de um
passarinho. Quem vai discutir com ele?

Não quero ser "levado a crer" por truques. Quero ser convencido pela lógica, e não vencido pela reverência.


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