Folha de S. Paulo


Eu.2

"Carlos, eu não sou três, nem trinta e três, sou trezentos e trinta e três", escrevia Mário de Andrade para seu amigo, o poeta Carlos Drummond de Andrade ("A lição do amigo", 1982).

Ele se dava conta de como é difícil (e inútil) responder à pergunta "Quem sou eu?". Tal unidade não existe. São meus desejos acionados a cada momento que tirarão um rosto desse poliedro multifacetadíssimo, que é como roda o programa Eu em nossa mente.

Quem sou eu que te escreve, leitor? Acionado por desejos que contêm vaidade, vontade de cuidar, de ser claro e me fazer entender, de raiva dos psicogentes que falam enrolado e que se escondem atrás de um silêncio que lhes dê uma aura de importância (que não têm).

Pela vontade que a psicanálise cumpra um papel social, já que, como terapia, ela é irremediavelmente elitista (ok, um pouco atrás da neurocirurgia).

Enfim, essa é a cara que aqui se dá a tapa, que põe o bacalhau na porta da venda para o freguês ver se ele presta ou não, é este um Eu aqui presente.
"Eu" (Ego; Le moi; das ich) está em permanente risco de construção ou de consumição.

Ele se encontra entre poderosas forças internas e externas. As internas o pressionam com o desejo de agregar e de desagregar (Eros e o impulso de morte), esses desejos ardem por satisfação, de formas que "Eu" não considera possível, já que outro programa, o superego (o acima de mim; Le surmoi; das überich), vem com todo o seu poder de crítica, de culpa, de exigências de pureza e perfeição, como um censor cruel a dizer, "como você ousou pensar nesse desejo?".

Sim, para um superego poderoso existe pecado de pensamento, e seu poder vem de suas ferramentas punitivas (ameaças físicas, de "sifudências", de ridículo, e a pior delas, de culpa) a dizer, "olha só o que vai te acontecer se..."

As forças externas acabam por ser internas também, já que não temos outro jeito de lê-las senão por nossos sentidos, que as jogam para dentro e as modificam: ora para pior (baratas monstruosas), ora para menos (negação: um elefante na sala varrido para debaixo do tapete).

Tendo que atender esses guichês todos, nosso "Eu" vira um reles diplomata atarantado, ou, nas palavras de Fernando Pessoa: "Começo a conhecer-me. Não existo. / Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram".

Já temos então um caminho para que o Eu exista, e não seja só um chinês dos pratos, eternamente apavorado e correndo de um lado para o outro para não deixar que nenhum deles caia.

É preciso que ele conheça seus inimigos, como dizia Sun Tzu, ou, como na síntese de Spinoza, que ele saiba mais sobre os cordéis que o manipulam.

Essa é a função da psicanálise e do conhecimento da natureza humana, de como a genética influencia nosso comportamento.

É o que meu Eu vem tentando fazer, primeiro em meu próprio benefício, depois em cada espaço que me abrem, seja aqui, seja no consultório, seja na TV.

A ética com que mais simpatizo é a utilitarista, de John Stuart Mill: a infelicidade dos outros atrapalha a minha felicidade, donde, quero que todos possam ser felizes.

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