Folha de S. Paulo


Limitações

"Não queira ir o sapateiro além das sandálias", ensina o velho ditado. Neste momento histórico em que um homem admirável descalça as sandálias de Pedro por constatar suas limitações para usá-las, há que se considerar como a espécie humana se relaciona com suas fronteiras, sejam elas físicas, psíquicas, políticas ou morais.

A atitude de Joseph Ratzinger é um ícone da complexidade humana: as limitações podem ser usadas para o retiro, mas ao mesmo tempo como arma política. "A paciência, assim como a República de Portugal, também tem limites", nos lembra o Barão de Itararé. Ao que parece, o papa usa os seus como um pai que diz "basta", na principal prerrogativa do poder: a autoridade.

"Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?", discursava Cícero em Roma, avisando que o limite dela estava próximo. Ah, como nos faz falta um Cícero na política atual. Ele fazia oposição de verdade, e a oposição, que nos é ausente, serve para pôr limites ao autoritarismo dos pretendentes a tirano.

O reconhecimento de limitações, assim como o reconhecimento do erro, é artigo raro e caro (querido, precioso, custoso) em nossa espécie. "Citius, altius, fortius" (mais rápido, mais alto, mais forte) é o lema olímpico que incita à superação de nossos limites, assim como o fazem as paralimpíadas (que tiveram seu "o" amputado recentemente, num exagero de coerência).

Somos a espécie do "húbris", do exagero, da desmedida, dos que, quando no poder, não largam o osso, o que torna mais belo o gesto do hoje papa emérito.

Assim, o respeito às limitações, ou às fronteiras, convive com o desejo de ignorá-las. Vivo esse diálogo interno --eu, aos 25 anos, a conviver com um RG que afirma insistentemente meu direito de pagar meia no cinema.

Certo, tornei-me cauteloso com as calçadas e seus buracos, sem abrir mão de, com um amigo de 88 anos (pelo RG), fazer turismo no Rio, uma fronteira deliciosa que insistimos em defender. De carro, claro.

As limitações podem ser também um ativo a se explorar. Em pequena escala, como "les misérables" exploram nossa "culpa" ao exibir suas chagas no trânsito. Em larga escala, as "zelite" devem abrir mão do seu direito à propriedade e à meritocracia para indenizar as limitações supostamente por elas impostas aos "sem-terra", "sem-teto", "sem-bolsa-ditadura", "sem alguma coisa" passível de exploração.

"Sintam culpa e paguem por ela", dizem as esquerdas no poder. Descobriram o domínio pela culpa, não precisam mais de revoluções para acabar com a democracia.

O politicamente correto é filho dessa descoberta: como controlar nossa vida, dizendo que é para o bem do povo. Como secar a fonte de verba publicitária da imprensa (que lhe dá liberdade de discordar do governo)? Ora, é só sair proibindo anúncios de "coisas que fazem mal", critério tão vago que pode abranger de tabaco a brinquedos infantis.

É verdade que, às vezes, erram a mão. Como quando resolveram calar a blogueira Yoani Sánchez, e ela respondeu: "Quisera eu que em Cuba se pudesse protestar assim".
Brilhante.

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