Folha de S. Paulo


Dilma caminha na prancha

Dilma Rousseff é forçada a andar na prancha de um navio tomado por piratas. Michel Temer, espada na mão, dá instruções no galeão antes mesmo de se livrar da capitã subjugada. Corsários de outras facções desistem de tentar salvar a senhora. Preferem viver das arcas do PMDB a se arriscar bater nas rochas em uma nau sem rumo avariada.

"Meu Deus do céu! Essa é a nossa alternativa de poder..."

Este poderia ser um bom roteiro até o comentário do ministro do STF Luís Roberto Barroso quando viu a foto sorridente da cúpula do PMDB no desembarque do governo Dilma, em março.

Mas e a senhora na prancha? Merece ser atirada ao mar?

A presidente e o PT terão sua narrativa: "Foi golpe". Muitos acham isso. Chico Buarque até já frisou que "não se pode pôr em dúvida a integridade da presidente Dilma Rousseff".

Até o final de 2013, havia a "Dilma antes": a presidente da faxina política e que tomou medidas sempre defendidas pelos empresários que a abominam agora.

Logo de saída, em 2011, demitiu seis ministros suspeitos de corrupção. Nos meses seguintes, entre 2011 e 2013, receberia apoio de empresários ao mandar baixar os juros.

No mesmo período, Dilma reduziria impostos da folha de salários e de produtos de mais de 50 setores, de geladeiras a automóveis. Os cortes de impostos somariam quase R$ 70 bilhões só em 2013. Outros bilhões deixariam de ser arrecadados mais à frente em ações para tentar tirar a economia do atoleiro.

A Fiesp do pato do impeachment foi grande defensora dessas medidas. Assim como outras entidades empresariais, também aplaudiu a redução de 32% nas tarifas de energia do setor industrial. Os sinais de desajustes ainda eram apontados por poucos, a maioria acadêmicos, lá do alto da vigia do navio.

Olhando para trás hoje, é fácil a arqueologia do desastre:

- As desonerações produziram rombos nas contas públicas e minaram a confiança no governo, o que fez despencar investimentos;
- A redução de tarifas desorganizou o setor de energia e represou reajustes;
- O corte nos juros liberou pressões inflacionárias;
- Para contorná-las, o governo segurou outras tarifas e preços, como combustíveis e o dólar;
- Tudo somado, a conta ficaria evidente em 2014.

Quando o mar virou de vez, Dilma passou a mentir para se reeleger. Vencida a disputa, e com as contas arrebentadas, a presidente mudaria sua política econômica sem se explicar. Trouxe um ministro do mercado financeiro (Joaquim Levy), promoveu um tarifaço e tentou aprovar a CPMF.

Já era tarde para tentar fazer tudo o que acusava seus adversários de querer fazer. Uma a uma suas propostas foram sabotadas pela oposição, que adicionou "pautas-bombas" para a arruinar de vez.

A partir daí, temos a "Dilma depois". Com o avanço da Lava Jato sobre seu governo, tudo o que a presidente passou a fazer teve e tem o objetivo de salvar sua pele e a do PT.

Com o Planalto transformado em um bunker, mais recentemente Dilma tentou nomear Lula ministro para livrá-lo de uma possível prisão e trocou seu ministro da Justiça por alguém que prometeu afastar qualquer policial federal que soltasse "um cheiro" de vazamento na Lava Jato.

Incitou movimentos sociais oferecendo fundos que não tem e sinalizou com a oferta de ministérios, bancos e cargos a quem estivesse disposto a apoiá-la. Só no PP, sua última boia de salvação (agora furada), há 32 políticos investigados na Lava Jato.

Pode-se argumentar que o jogo em Brasília é esse e que "Dilma depois" não difere muito dos políticos tradicionais, como os que agora tentam tomar seu navio. Mas ficou difícil defender a "integridade" da presidente.

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E há as pedaladas. O argumento da presidente de que todos fazem isso é falho. Aceleradas por Lula (como mostra o gráfico), elas tiveram forte aumento em seu primeiro governo e explodiram no segundo, justamente quando Dilma procurava se reeleger.

Hoje sabemos, em uma campanha não apenas azeitada por verbas que não existiam (e que geraram o inédito rombo nas contas públicas) quanto suspeita de ter sido financiada com dinheiro roubado da Petrobras, segundo confissão da Andrade Gutierrez de que ao menos R$ 10 milhões vieram do petrolão e de obras estatais.

É certo que a cabeça de Dilma estava a prêmio muito antes de tudo isso acontecer ou ser revelado. Em sabatina na Folha na terça (12), o ex-ministro do Supremo Ayres Britto lembrou que logo depois da segunda posse de Dilma, no início de 2015, já era consultado publicamente se a presidente deveria sofrer um impeachment. Coisa de "terceiro turno", assentiu.

Isso não invalida nada do que foi feito depois e o que se sabe hoje. O julgamento de Dilma é fartamente político, embalado por gente investigada procurando livrar o próprio pescoço. Mas é técnico também. A experiência das pedaladas, do desajuste fiscal e da punição aos corruptos talvez seja nossa maior lição.

Como disse Ayres Britto, será um avanço se no rito do impeachment e, principalmente, no desenrolar das investigações contra políticos na Lava Jato, o Poder Judiciário possa ser capaz de manter seu protagonismo. Independentemente do resultado de domingo.


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