Folha de S. Paulo


Em 2017 nem Jesus Cristo escapou de nossa guerra política

Leio um artigo dizendo que Jesus Cristo era um tipo "black bloc" invadindo o templo e quebrando maquininhas de cartão de crédito. Li outro em que ele tinha um viés mais pró-mercado, dizendo pra colocar dinheiro a juros com os banqueiros. Depois larguei de mão de ler essas coisas. Tenho certeza que encontraria algum texto com a posição de Nosso Senhor sobre a reforma da Previdência, ou garantindo que ele vai marcar presença, junto com o Bono Vox, no julgamento do Lula dia 24, em Porto Alegre. Só não sei se contra ou a favor.

Me dei conta de que todo esse alarido digital foi a cara de nossa democracia em 2017. Quase derrubamos o presidente da República por uma sutil troca de lugar da frase "tem que manter isso, viu?", no meio daquele cochicho noturno, no Jaburu, e passamos o ano assistindo à ladainha sem fim dos que denunciam um golpe que nunca aconteceu, e dos que pedem por um golpe que nunca acontecerá.

2017 foi o ano em que nos seduzimos pela guerra cultural. Brigamos até cansar por uma exposição de arte no MAM, sem nenhum acordo sobre o sentido da palavra "liberdade". O ano foi (quem diria) de Judith Butler e Olavo de Carvalho. Ela hostilizada por virtuosos "de direita" em uma palestra no Sesc Pompeia; ele tendo o filme barrado por virtuosos "de esquerda" no Cine PE. E por fim da Anitta. A única que conseguiu embananar o debate todo. Ninguém soube dizer se aquela celulite em câmera lenta foi suficiente para compensar a "objetificação da mulher" feita no clipe do Vidigal.

O que mais me divertiu, neste ano barroco, foram os juristas da internet. Os tipos sem paciência para ler processo nenhum, mas "sabem" que o Lula é culpado, que o Garotinho devia estar preso e que o Temer tinha que ter sido posto pra rua. Seu maior mérito é dizer no ato, sem lero-lero, o que um ministro do Supremo gasta semanas para concluir. Seu inimigo número um é o Gilmar Mendes e sua premissa básica é que prender é melhor que soltar. E que são todos obviamente culpados. Sua palavra preferida: canalhas!

No final do ano descobrimos que 79% e 85% dos brasileiros, respectivamente, desaprovam as políticas de combate à inflação e taxa de juros do governo (CNI Ibope). Quando li isto me lembrei de Brian Caplan e sua tese sobre o "viés pessimista" dos eleitores. A tendência de achar que tudo anda insuportavelmente mal, quando as coisas na verdade estão melhorando. Não digo que este seja um traço de qualquer democracia, mas é certamente algo alimentado pela "retórica de fim de mundo" e pela guerra política que tomou conta de nosso debate público. O problema disso é óbvio: quem não sabe onde chegou, e nem por que chegou, não sabe para onde ir. E corre o risco de dar marcha a ré.

O fato é que, enquanto nos ocupávamos com tantos assuntos interessantes, avançamos em uma agenda de reformas no Congresso. É quase inacreditável, mas avançamos. A mais inusitada foi a reforma trabalhista e o fim do imposto sindical. Não li nenhum artigo com a posição de Jesus Cristo sobre a reforma, mas li muita gente boa dizendo que a nova lei não vai pegar. Que o debate foi malfeito e que o Congresso não teria legitimidade para fazer uma reforma dessas. Foi realmente duro o ano de 2017. Oxalá voltemos todos mais amenos, depois do Réveillon.


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