Folha de S. Paulo


Buda

A coragem e a articulação de Maria de Fátima rompem o sistema velado de castas que impera no Brasil

Maria de Fátima da Silva, mãe do bailarino DG –assassinado em circunstâncias ainda não esclarecidas–, é medalhista de natação em águas abertas.

Andréa Beltrão, minha parceira em "Tapas e Beijos", é colega dela na turma de nado do Posto 6 de Copacabana.

Andréa mora na Atlântica, Maria de Fátima no morro do Cantagalo, mas as duas desfrutam do mesmo mar; junto com as tartarugas, os peixes e os sacos plásticos.

Você pode sofrer de depressão na cobertura com vista ou no barraco da comunidade. Existe um impulso vital, inerente a cada um, que independe de condição social, classe, cor ou credo. A natureza do Rio é democrática, e a praia –limite forçoso da urbes–, o lugar onde as diferenças se anulam.

Estou lendo para o meu filho pequeno o mangá "Buda", de Osamu Tezuka, que explica bem o sistema de castas da sociedade indiana. Nela, a mobilidade social é uma impossibilidade cósmica.

Filhos de párias serão párias; os de sudras, sudras; vaixás, vaixás; xátrias, xátrias e, acima de todos, os sacerdotes brâmanes darão crias a outros brâmanes. Buda vem questionar a ordem suprema, ao ensinar que todos os seres são semelhantes diante da morte e do sofrimento.

Eu não sei se a polícia matou DG. As suspeitas recaem sobre os policiais em ação naquela noite. Ouvi boatos a respeito da proximidade de DG com os traficantes da área, mas nada que justifique a imagem do rapaz morto com um tiro nas costas, nos fundos de uma creche, ou o fato de a cena do crime ter sido alterada.

Maria de Fátima tem constituição robusta, é firme e clara no que pensa. Não há sinal de "coitadismo" nela, não há subordinação ou sentimento de inferioridade. Nem quando acuada por um revólver em plena lagoa Rodrigo de Freitas.

Há dez anos pratica o nado. Começou com tardios 46 anos. Ela fala das vitórias nos 1.500 metros que ligam o Leblon a Ipanema com o mesmo orgulho com que jura levar adiante a investigação sobre o assassinato de seu único filho homem.

Não há desespero.

A coragem e a capacidade de articulação de Maria de Fátima rompem o sistema velado de castas que impera no Brasil. O mar a ensinou que ninguém é melhor do que ninguém, a não ser no espírito.

Criminosos, trabalhadores, artistas, soldados, comerciantes e donas de casa se misturam no morro. À polícia coube o papel de dar fim a uma política de abandono da qual foi agente por longos anos.

Um dos grandes medos da minha adolescência era o de ser parada por uma blitz. O desrespeito aos direitos humanos –herança da ditadura militar– era regra. O tráfico de drogas desviou o foco das forças de segurança, de guerrilheiros de classe média, para as comunidades carentes. Mas o caráter brutal da cartilha dos pelotões continuou intacto.

A declaração de Maria de Fátima de que a UPP é uma farsa e a população tem mais medo da polícia do que do bandido procede. A favela é formada por párias e sudras –mendigos e escravos– na visão dos xátrias do choque.

Mas a UPP não pode ser uma farsa. Trata-se do único plano concreto de reintegração de áreas esquecidas pelo poder público surgido desde que eu me conheço por gente. É preciso resguardar os locais de confronto e avançar nos projetos sociais não repressores.

Eu temo o uso político eleitoreiro de casos como o de DG. A violência policial não é privilégio de nenhum partido, vide Álvaro Lins. Independentemente de quem vença a próxima eleição, a estratégia de ocupação recém-implantada deve ser levada adiante.

O Congresso está para votar uma lei que desmilitariza a polícia, não sei se resolve. José Mariano Beltrame defende que parte do gasto em segurança dos Estados seja bancado pela União, o que não acontece hoje.

Me encontrei com Beltrame em novembro de 2010, quando o Rio sofria uma onda de arrastões planejada pelos chefes do tráfico em resposta às UPPs. O secretário falou de um trabalho de educação a longo prazo, capaz de formar quadros dotados de uma mentalidade diferente da que impera hoje nos quartéis.

A percepção de que um preto pobre é inferior a um branco rico nasceu com a escravidão e contaminou todo o tecido social. Um regimento armado deste ideal deve ser combatido.

Falta Buda à corporação.


Endereço da página: