Folha de S. Paulo


Paquetá

Londres escapou com mais galhardia do argentarismo do terceiro milênio que Nova York e Paris. As grifes dominaram as principais avenidas, o boom imobiliário cercou a velha torre, mas a cidade não perdeu a nobreza nem a rebeldia.

A geografia forjou o caráter liberto, feroz da ilha, que a protege do continente, das estatísticas e das ruas tomadas pelo prêt-à-porter.

Da London Philharmonic ao New Experimentalism, de Rembrandt a Mira Schendel, de Jurowski a Rie Nakajima, a arte existe e resiste em Londres.

A mais inglesa dos brasileiros, Barbara Heliodora, me mandou de Natal uma compilação de ofensas chiques chamada "When Insults Had Class". Nela, Bernard Shaw convida Winston Churchill para a sua estreia teatral e deixa dois ingressos à disposição, para ele e um amigo: —"Caso você tenha algum." Churchill responde que não poderá estar presente na primeira noite, mas que certamente irá na segunda: —"Caso ela exista".

De Shakespeare ao Sex Pistols, não importa a época ou as convicções morais, o inglês é um símio dominante, dono de um sarcasmo polido, terrível e admirável; o Homo sapiens sapiens por excelência. É Drake, o pirata civilizado; os tesouros do British Museum estão lá para comprovar.

Na exposição "Come and See", na Serpentine Sackler Gallery, os irmãos Jake e Dinos Chapman traçam uma reta que liga o Mayflower, com os primeiros colonos da América, a Ku Klux Klan, a Alemanha nazista e o McDonald's.

É uma crítica tão perversa ao progresso e ao triunfo do capitalismo que não há como não compactuar do sadismo dos artistas de pregar o Ronald McDonald na cruz.

Holocaustos em miniatura, com pilhas de cadáveres aglomerados por SSs diante do mefistofélico M da lanchonete; e o mesmo Ronald, agora algoz, agarrado a louras de três cabeças, pilotando uma lancha guiada por golfinhos carnívoros pelo rio de "No Coração das Trevas". Manequins em tamanho natural fantasiados de KKK povoam os corredores, causando a estranha sensação de que nós, presentes, compartilhamos do mesmo ideal dos de capuz.

"Come and See" é ácida e assustadora, fala com escárnio e horror da supremacia branca da Europa e dos fundadores da América. Passa pelo Vietnã, por Hitler e pela conquista da Lua. É assombrosa, mas não é comigo, era algo lá, com eles.

Depois de quase um mês de civilização, já desconfiada do hedonismo burguês que costuma aflorar nas viagens de férias ao exterior, no último dia antes de embarcar para o Brasil, fui ao cinema assistir "12 Anos de Escravidão", do diretor inglês com nome de astro americano, Steve McQueen.

Baseada no relato real de um afro-americano livre, raptado por traficantes de escravos do sul dos Estados Unidos, a película abordava muitos dos temas presentes na alegoria dos irmãos Chapman: a segregação racial, o puritanismo, a KKK. Mas "12 Anos de Escravidão", além de seco e realista, era o retrato de algo que eu conhecia bem.

Foi botar o olho nas plantações de cana, nos pelourinhos tão iguais aos da minha terra, nos senhores sádicos cozidos sob o calor dos trópicos, foi me compadecer do drama de Lupita Nyong'o para cair num choro sem solução.

Não há heroísmo à moda americana, só submissão. McQueen compreende o custo moral da sobrevivência e suas consequências no convívio lascivo entre a casa grande e a senzala.

A beleza aparece raramente, na melancolia dos pântanos da Geórgia, ou no entardecer no campo de algodão, o resto é humilhação e silêncio. Cinema clássico, cada vez mais raro de se ver, imune à estética da embalagem.

A violência do filme despertou em mim um sentimento inconfessável. Em meio a surras e chibatas, forcas e humilhações, me bateu uma saudade imensa das babás da minha infância, da cozinha das casas em que morei, dos quartos de empregada e do Odair José. E vergonha de ter saudade de tudo que é fruto da maldade que o filme denuncia.

Nada tenho de civilizado, pensei. E me veio o banzo do ar úmido e da tragédia insolúvel da Paquetá em que eu nasci.

Foi a pá de cal do meu "rolezinho".


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