Folha de S. Paulo


Água

Pedro Piccinini
 (coluna do Fabrício Corsaletti)

Ultrassom
De jaleco, meu amigo de infância passa o ultrassom no meu abdômen e confirma que não tenho nada nos rins nem na bexiga. Você já deve ter eliminado o cálculo pela urina, diz. Aproveito e peço pra ele dar uma olhada no meu fígado. Ele responde é lógico, como se já esperasse por isso, e depois olha lá o bichão. Aquela mancha cinza-clara. O claro indica gordura, que a gente chama de esteatose. Mas é normal, todo mundo que bebe tem isso. Então ele pausa a imagem, levanta a camisa e diz vamos ver quem é o mais cachaceiro. Encosta o aparelho na própria barriga e procura o lugar certo. No monitor, o fígado do meu amigo surge ao lado do meu. Ele ri, satisfeito: eu tinha certeza que ia dar empate.

Parada
Minha mulher ouve as instruções do porteiro do hotel. Como não entendo francês, fico olhando os pardais que ciscam no jardim da frente. Hoje vamos conhecer uma vila medieval de pouco mais de 40 casas, voltamos antes de escurecer e amanhã continuamos a subir rumo a Paris. Percebo que a conversa vai longe. Saio pra rua sem cigarros, porque não fumo, mas esta seria uma boa hora pra fumar. Há uma pequena ponte de pedra no fim da quadra e, na outra margem, uma casa, também de pedra, com flores vermelhas nas janelas azuis. Se eu tivesse a chance de viver aqui, que tipo de livros escreveria? Talvez romances policiais. Ou poemas que não interessariam a ninguém -o que não mudaria muita coisa. Grito já volto pra minha mulher e caminho até a ponte. O rio, dourado de sol, está bem mais cheio do que eu imaginava. Giro o corpo pra ver tudo o que posso: gatos nos telhados, velhos jogando pétanque, a placa da pizzaria onde jantamos na noite anterior, uma porta violeta com aldrava dourada, uma menina levando um coelho (pro almoço ou de estimação?) na cesta da bicicleta. Penso no trabalho que deu pra construir esse mundo -no trabalho que dá pra construir qualquer coisa. Penso no estrago que uma única pessoa é capaz de fazer. Minha mulher buzina e, quando me viro na sua direção, ela bota uma garrafa de vinho pra fora do carro e balança lentamente de um lado pro outro. Sou um cachorro hipnotizado por um bife. Vou de rabo abanando e ganindo feliz.

Chuva
Essa mulher é como chuva: não para de cair na minha cabeça. Essa mulher é como chuva vista do 13º andar: só de olhar pra ela fico com a alma lavada. No buraco do asfalto ela faz um espelho. Eu me ponho de quatro pra beber dessa água. As estrelas roubadas me transformam num santo. Quem olha pergunta se virei cachorro.

*

A coluna "Prosa/Poesia" é publicada aos domingos, a cada 15 dias, na revista sãopaulo.


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