Folha de S. Paulo


Sicílias

Pedro Piccinni

Às vezes, quando estou cansado ou deprimido, depois de um dia de trabalho ruim ou depois de ler os jornais atrasados, entro no Google Earth e viajo sem mala e sem dinheiro pelo mundo.

Me arrasto por vielas de Tóquio cheias de bares minúsculos com letreiros ilegíveis; plano pela ilha verde e despovoada onde o escritor norueguês Karl Ove passou a infância (e que é o pano de fundo do terceiro volume da sua série autobiográfica); paro no centro de uma praça de Paris onde há jovens e velhos jogando petanque, a bocha francesa, com bolas reluzentes de metal; confiro as samambaias que pendem das sacadas de ferro rendilhado em New Orleans; visito meu bairro preferido em Buenos Aires; revejo (imagino, porque a imagem não é tão boa) a luz amarela da Bahia; desço até o litoral de São Paulo e prometo a mim mesmo que até o fim do mês vou pra lá de verdade, de ônibus, pra não esquecer que sempre há uma saída, nem que seja pro mar; atravesso os campos da Mongólia, com seus cavalinhos peludos e desengonçados; desço em Moscou (claro!, por que nunca pensei em ir pra Moscou?); fico um bom tempo observando uma ponte vermelha na Irlanda que uma mulher de rosto borrado e meias-calças pretas atravessa com o neon de um pub ao fundo.

Depois a Itália –abro um vinho, Veneza, faço anotações repetitivas e sem qualquer censura: "pele de afresco", "olhos de afresco florentino", "olhos de afresco" etc. Mas na Sicília me dou conta de que estou bêbado e com sono. Levo a garrafa vazia pra cozinha, desligo tudo e vou dormir.

E já que falei em Sicília, e como não tenho mais nada a dizer sobre essas viagens virtuais, transcrevo abaixo um trecho do romance siciliano "O Leopardo", de Lampedusa, na tradução de Maurício Santana Dias, que li nas férias com grande prazer. Nele, o protagonista de meia idade, ainda viril mas insatisfeito com o rumo que sua vida erótica está tomando, contempla uma fonte sensual em seu palácio de verão. (A fim de evitar constrangimentos, aconselho o leitor a mudar sua chave de leitura do "estilo vira-lata" pro "estilo chique", que a prosa de Lampedusa é chique mesmo.)

"Sopradas pelos búzios dos Tritões, pelas conchas das Náiades, pelas narinas dos monstros marinhos, as águas irrompiam em filamentos sutis, martelavam com pungente rumor a superfície esverdeada da bacia, produziam saltos, bolhas, espumas, ondulações, frêmitos, remoinhos risonhos; de toda fonte, das águas tépidas, das pedras revestidas de musgos aveludados emanava a promessa de um prazer que jamais poderia se transformar em dor. Sobre uma ilhota no centro da bacia redonda, modelado por um cinzel inábil mas sensual, um Netuno rude e sorridente agarrava uma Anfitrite libidinosa; o umbigo dela brilhava ao sol encharcado pelos jatos, ninho, em breve, de beijos secretos na penumbra subaquática. Dom Fabrizio parou, olhou, recordou, lamentou. Permaneceu ali por um bom tempo."

A coluna "Prosa/Poesia" é publicada aos domingos a cada 15 dias na "revista sãopaulo"

Bruno Santos/Folhapress
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