Folha de S. Paulo


Droneiro

Pedro Piccinini
Ilustração da coluna de Fabrício Corsaletti de 20.ago.2017

Meu pai me pede que eu o acompanhe. Não sei pra onde ele vai, mas topo ir junto. Dou um beijo na minha mãe, que está lendo no quarto, e vou pra garagem. Mas meu pai já está no meio da rua com o carro ligado.

Duas quadras depois, ele saca um boné do bolso da jaqueta e diz solenemente:

— Filho, você sabe que existe o Paulinho Corsaletti dentista, um profissional sério, que nunca deixa um cliente na mão. Esse não usa boné. (Olho pra sua careca.) Mas também existe o Paulinho Corsaletti violeiro, que não recusa uma festa ou um botequim. Esse está sempre de boné. (Ele coloca o boné na cabeça.) Hoje você vai conhecer o Paulinho droneiro. Esse usa o boné assim. (Ele tira o boné e o coloca de novo, com a aba virada pra trás.)

Paramos numa curva de uma estrada de terra, debaixo de uma árvore, e meu pai monta o drone. Tenta me explicar a função de cada peça, mas de repente paro de acompanhar o raciocínio. Não me interesso muito por tecnologia. Meu pai sabe disso e diz pra eu não me preocupar com a parte técnica, que o melhor está por vir.

Feito uma mosca gigante de ficção científica, logo o drone está sobrevoando os pastos. Na tela do smartphone acoplado ao controle, vemos o vale do Sapo, o rio da Âncora, o rebanho de vacas e alguns cavalos do Camil. O zunido do aparelho assusta os animais. Eles correm, em miniatura, como corriam na minha imaginação quando eu brincava com meu Forte Apache.

Então meu pai conduz o drone em direção à cidade. A estação de trem, as casas velhas —alguns meninos soltando pipa. A praça Ataliba Leonel, com sua fonte em forma de vitória-régia. E no alto do morro a igreja amarela e branca, idêntica a uma peça de maquete.

A vida toda é desse tamaínho. Meu pai se anima: vamos fazer uma visita pra Paula.

Ele baixa o drone em cima da casa da minha irmã, ao mesmo tempo em que telefona pra ela. Sai aí no quintal. E lá está ela! Em seguida surgem minha sobrinha e meu cunhado. Eles acenam pra câmera e voltam pra dentro. (Mais tarde me contam que dias antes deram um churrasco pra uns amigos e não convidaram meus pais. Minha mãe não se importou, imagina. Mas meu pai fez o drone descer a uns dois ou três metros da piscina com um cartaz: "ESTOU DE OLHO EM VOCÊS, TRAIDORES".)

Depois meu pai telefona pro Buinha. Cadê você, seu viado? Está no Bar do Serginho, com Betinho e Aguinaldo. Vamos lá também. Na calçada, rindo e pulando com um taco de sinuca nas mãos, o Buinha ameaça arrebentar o drone.

Revejo os pátios das duas escolas onde estudei, os quintais dos amigos, os escombros do supermercado que pegou fogo.

Um carcará pousa numa cerca não muito longe de nós e sinto vontade de tomar uma cerveja. Meu pai concorda que já deu e guarda a tralha toda numa caixa cinza de isopor.

De carro, presos mais uma vez em nossos corpos grandes e pesados, meu pai me pergunta como vão as coisas em São Paulo.

*

A coluna "Prosa/Poesia" é publicada aos domingos a cada 15 dias na "revista sãopaulo"

Eduardo Knapp/Folhapress
Chamada mobile da edição de 20.ago.2017 da sãopaulo
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