Folha de S. Paulo


Café

Pedro Piccininni
Ilustração da coluna Prosa/Poesia de Fabrício Corsaletti de 6.ago.2017
Ilustração da coluna Prosa/Poesia de Fabrício Corsaletti de 6.ago.2017

Sonhei que estourava a Terceira Guerra Mundial, dessa vez o Brasil não era poupado, o sangue coalhava na avenida Paulista, mas eu tinha uma ideia genial pra resolver o problema da fome (minha, pelo menos): estocar Nhá Benta. Então eu comprava toda a Nhá Benta de uma farmácia antiga (altas prateleiras de madeira) e levava pra casa. Se não tem pão, coma Nhá Benta. No entanto só fui acordar muito depois, com a guilhotina implacável da manhã.

Agora uma história real.

De carro, meu amigo o poeta Alberto Martins me oferece carona pro trabalho. Assim a gente conversa um pouco, ele diz. Aceito, claro. Uma das três melhores coisas de São Paulo é conversar com esse amigo. Ele diz conheço um café no caminho, dentro de uma galeria de arte, dá tempo de fazer uma parada? Acho que sim. Oba. Vamos lá.

O lugar é um armazém vermelho-ferrugem que lembra Berlim e se destaca entre as lojas cinza de letreiros banguelas diante das quais flanelinhas e nóias circulam e caem. Um oásis de severidade e bom gosto no meio da... —-ah, políticos brasileiros, desapareçam da minha cabeça. E viva os tradutores de poesia, os professores do Ensino Fundamental e o doutor Drauzio Varella, que ajuda tanta gente a viver melhor.

Entramos sem bater; olhos conferem nossas caras brancas, nossas camisas semi-novas, nossas barrigas dilatadas; passamos por uma sequência de salas escuras —algumas exibem telas abstratas; outras, vídeos sobre os índios da Amazônia. Mas o espaço coberto termina e saímos num pátio cheio orquídeas, como dizer?, perturbadas. Em pé, duas figuras magras e lindas, um cara e uma mina, tomam café fumando Marlboro. O café é por aqui?, meu amigo pergunta. Eles gaguejam de tédio, não chegam a nos conceder uma frase, o cara indica o caminho com um polegar pau molão —e vamos mais pro fundo do terreno.

Uma porta. Meu amigo abre. É uma cozinha. Mesa, quatro cadeiras, um balcão atolado de envelopes, uma pia com um prato e uma faca sujos e uma cafeteira elétrica ligada, ainda com um resto de café. Me pergunto se aquele é algum novo conceito de cafeteria; se a cafeteira elétrica, depois do café de coador, voltou à moda em Williamsburg e por isso está bombando na Zona Oeste paulistana. Meu amigo diz que estranho, não lembro de ser assim. Cê tem certeza que era aqui mesmo?

Ele dá risada e enche duas xícaras. Sentamos e fingimos que estamos à vontade. Falamos baixo da situação política. Qualquer outro assunto parece irrelevante.

Vem a empregada cor de empregada vestida de empregada —somos os senhores de escravos do futuro, o Brasil é um clichê diabólico etc. Ela diz oi tudo bem tomando um cafezinho? Eu digo oi tudo bem de quem é o café? Cês são amigo do Marco? O Marco nunca chega antes das três.

Eu gostaria de pagar a conta e mudar hoje mesmo pra Montevidéu. Mas não tem conta pra pagar. Agradecemos à empregada, passamos de novo pelos clones de si mesmos e lá fora nosso carro foi roubado.

*

A coluna "Prosa/Poesia" é publicada aos domingos a cada 15 dias na "revista sãopaulo"

Keiny Andrade/Folhapress
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