Folha de S. Paulo


'Paterson'

Acordei antes do despertador tocar, beijei minha namorada na testa, lavei o rosto, me vesti, passei pela cozinha, peguei uma banana, guardei no bolso do casaco, abri a porta da sala, chutei o jornal pra dentro, chamei o elevador, cumprimentei o porteiro, atravessei a rua e vim pra casa a pé.

Ainda não eram sete da manhã e a avenida Pacaembu já estava com trânsito pesado. Buzinas, música alta, gente gritando. Passei na frente do estádio. Como é bonito, pensei. Não só o edifício em si, mas também o lugar onde ele foi erguido, no meio de um vale. Lembrei de uma reportagem lida dias antes numa revista. Dizia que abriram um café ali na entrada. Imaginei mesas espalhadas entre as colunas, debaixo da laje, e em cima delas xícaras, cadernos, óculos, velas, laptops, copos de conhaque. Tirei o celular do bolso e me mandei um e-mail com o assunto "ir café pacaembu logo". Depois subi sem pressa a ladeira da Faap.

Sempre que eu caminhava naquele trecho me chamava a atenção uma janela enferrujada quase encoberta por um galho de goiabeira. De alguma forma, ela era o centro da paisagem. Ou o último fragmento de um mundo em extinção? Estudantes de mochila nas costas e cabeça baixa cruzavam o portão da faculdade. A luz caía fora dos relógios, nas cabeleiras das meninas atrasadas.

Quase parei na padaria da praça Vilaboim, mas fiquei com preguiça de falar com as pessoas. Um senhor de boina veio na minha direção com um cachorro de raça. Onde foram parar os vira-latas do Brasil? No vão das pernas dos mendigos, sem dúvida.

Na semana passada o caixa de uma papelaria me contou uma história louca sobre seus filhos. Demorei pra entender que não eram crianças, mas cachorros. Aí eu disse que também não tinha filhos e, assim como ele, adorava animais. Juro: achei que ele fosse me enfiar um lápis no olho. Por sorte, apenas chamou de fascista. Peguei meu troco e saí. Vivemos numa época estranha. O cara trata bicho como gente e gente como bicho, mas no fundo se considera uma pessoa boa. Quando se torna prefeito de São Paulo, sua primeira atitude é se deixar fotografar com um coala de estimação. No dia seguinte toca fogo nos índios da cracolândia.

Em vez de seguir em frente pelo parque Buenos Aires e tomar o caminho mais curto, peguei à direita e subi na direção da Paulista, entrei na Angélica, virei na rua do Sujinho e fiquei rodando pelo bairro. A maioria das lojas estava fechada. Nos botecos, operários de uniforme e botina tomavam café no balcão e trabalhadores em roupas sociais compravam pães de queijo pra comer no escritório.

Um dia vou abrir um bar, o Bar do Corsaletti. Vou chamar meu amigo Formiga pra comandar a grelha e o som. Vou ganhar dinheiro e olhar pro mapa-múndi como se fosse um cardápio. Vou parar de escrever e arrumar um monte de problemas. Vou beber o dobro e ter que parar de beber. Melhor não abrir bar nenhum. E além do mais tenho três livros pra terminar.

Sobrou pouco espaço pra falar de "Paterson", o novo filme de Jim Jarmusch. Mas concordo: os melhores poemas são escritos no ar, motoristas de ônibus vão salvar o planeta, a serenidade é cheia de fósforos.

A coluna "Prosa/Poesia" é publicada aos domingos a cada 15 dias na "revista sãopaulo"

Bruno Santos/Folhapress
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