Folha de S. Paulo


Karaokê

Pedro Piccinini

Quem lê esta coluna já deve ter percebido que ela não é exatamente uma fonte de informações inéditas, e duvido que alguém procure nela qualquer dica sobre qualquer coisa. Não, não me orgulho de escrever um antiguia gastro-sentimental contemporâneo. Mas também não me envergonho. Chega um tempo em que não importa estar ou não estar de bem consigo mesmo. Ter um ego ou uma égua, tanto faz. As pessoas são o que são, e você faz o que precisa fazer.

"Evite abacates", diz a doutora holística. "Me traga num saco de tergal orgânico", diz o orixá recém-chegado de Nova York. "Engula tudo", diz o novo ministro do Supremo. O mundo é chato e terrível. E eu acho que as feministas estão certas.

Mas eu falava (antes de começar a crônica) do karaokê da Nestor Pestana, na praça Roosevelt. Até o ano passado eu frequentava os karaokês da Liberdade. O problema é que estavam sempre cheios e só depois de esperar muitas horas é que um Frankenstein coreano te chamava ao palco pra se humilhar ao som do playback de "Nuvem de Lágrimas". A essa altura minha voz já tinha sido embaralhada pela tequila com energético e minha memória tinha ido pro espaço. No telão eu lia a nota: um 4,5, um 5,6.

O Arte Pizza, porém, nunca está lotado durante a semana. O piso é coberto por um carpete vermelho-angústia e as paredes espelhadas multiplicam o foda-se geral. O bar tem uma boa variedade de destilados, cerveja gelada a preço médio e um balcão de granito falso que seria lindo se fosse de madeira. Pelo salão, em sofás confortáveis, hipsters de 40, estudantes de 20 e um sujeito de 60 (já o encontrei mais de uma vez por lá) que lembra o personagem de Harry Dean Stanton em "Paris, Texas", do Wim Wenders.

Se bem que Martin Scorsese seria o cara certo pra filmar ali. O lugar é todo norte-americano: artificial, auto-irônico, de plástico. Com a vantagem de ter o charme da miséria brasileira corroendo cada detalhe. (Que Marx, ou Michel Temer, me amaldiçoe por essa frase perversa.)

Às três da manhã Chico Mattoso e eu mandamos uma versão sincera de "O Último Romântico", do Lulu Santos (nos anos 90 conheci um anão que dizia que ainda sentiríamos saudade do Lulu Santos, mas eu não sinto saudade de nada), e a plateia foi ao delírio.

Depois uma garota alta, magra e de cabelo descolorido desfiado - era o Dia da Mulher - pegou o microfone e cantou "A Luz de Tieta". Todo mundo quer saber com quem você se deita, nada pode prosperar etc. Quando a música acabou, fez uma pausa dramática e perguntou:

- O que é ser mulher?

Os que estavam conversando ficaram quietos. Com a mão livre ela pegou no cavalo da calça e chacoalhou com força, à maneira dos matchos, e respondeu transbordando cinismo trans:

- É TER UMA PERERECA!

Virou imediatamente a heroína da noite.

Na rua, o ar fresco e livre me fez pensar naquele padre maluco que planejava passar 20 horas no céu, pendurado em balões de gás coloridos, mas que o vento arrastou na direção do Atlântico. Subi a pé a ladeira de casa. Nas ruínas do horizonte, o sol nascia devagar.


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