Folha de S. Paulo


Mario

Pedro Piccinini

Pra espantar um banzo de vários dias, levantei da cama assim que abri os olhos, tomei um banho como quem recebe um passe, virei uma jarra de café com leite e chamei um Uber. Destino: rua Lopes Chaves, 546, Barra Funda, São Paulo, onde de 1921 a 1945, ano da sua morte, viveu o poeta Mário de Andrade.

O sobrado foi restaurado e é hoje (na verdade, desde os anos 90) a Oficina Cultural Casa Mário de Andrade, que oferece cursos, palestras e outras atividades bacanas, além de ser um museu em homenagem ao autor de "Macunaíma".

Eu nunca tinha ido lá. Fui e me surpreendi. É tudo muito bem cuidado. Mofo zero e zero naftalina. Nenhum cartaz pendurado torto. Luz natural no assoalho polido. Um guia simpático que fez a lição de casa e tem prazer em conversar a respeito.

Na entrada há um armário com fotos, cartas e documentos de Mário. Um longo bilhete destinado à mãe, com quem morava, chama a atenção: nele, o grande intérprete do Brasil dá triviais porém minuciosas instruções sobre a maneira como seus ternos e camisas deveriam ser passados. Seria cômico, se não fosse comovente, por ser tão neuroticamente humano.

Na sala ao lado, no alto das paredes brancas, uma faixa de 30 centímetros de reboco escavado nos permite ver o cor-de-rosa adornado com flores —um costume da época, segundo o guia— da pintura original. Isso me fez lembrar que uma vez bebi num bar do Cambuci com o mesmo tipo de enfeite; nesse caso, porém, o pintor não era anônimo, mas Alfredo Volpi, o gênio das bandeirinhas de São João.

O piano no qual Mário dava as aulas que lhe garantiam o sustento também está lá. Mas confesso que sempre acho estranho topar com um instrumento musical num museu. Não que seja contra qualquer museu da música. Mas sensações são sensações (seja lá o que isso signifique), e sinto que um instrumento musical é algo vivo, algo que não merece ser confinado. Basta observar um violão por um instante pra perceber que ele só precisa de alguém que saiba tocá-lo —ao contrário de nós, um violão só pensa em ser feliz.

Diante do piano de Mário de Andrade essa ideia se tornou ainda mais forte. Ou o seu dono ressuscitava dos mortos ou então era melhor chamar o Arrigo Barnabé pra cantar Lupicínio.

O ponto alto da visita foi sem dúvida poder entrar no escritório de um dos heróis dos meus 20 anos, um cômodo no andar de cima com duas janelas azuis abertas pra rua. Então foi aqui, pensei, enquanto repassava mentalmente a última estrofe do poema de abertura da "Lira Paulistana": "Minha viola quebrada,/ Raiva, anseios, lutas, vida,/ Miséria, tudo passou-se/ Em São Paulo". E foi apenas aqui: na solidão povoada que é a cabeça de todo escritor.

Agora o ar circula sem segredos. O guia nos conta que a mesa, que a máquina de escrever, que ao lado do quarto da irmã, ou da tia... Finjo que presto atenção. A falação termina. Agradeço e vou embora a pé, cruzando a cidade, "costureira de malditos", neste mundo velho sem Deus.


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