Folha de S. Paulo


Zumbis

"Vamos no cinema hoje às 16h30 ver um filme coreano de zumbis (sério!)?", dizia o WhatsApp do meu amigo. Topei na hora. Não porque seja um grande fã de zumbis, pelo contrário, nunca penso neles, mas porque fazia tempo que eu não via esse amigo e em geral das 17h às 19h estou de saco cheio de tudo, já trabalhei o que tinha que trabalhar, não consigo mais ler nem cozinhar nem resolver aquelas pequenas encrencas domésticas —malditas roldanas do varal quebradas há meses. Um filme coreano de zumbis! "Depois tomamos umas cervejas", continuava a mensagem. Encarei o convite como uma libertação.

Dentro da sala quase vazia, eu falava com meu amigo, que também é escritor, sobre o novo (e ótimo) livro do Matthew Shirts, "A feijoada completa", quando vi um rosto conhecido subindo a escada. Eu disse: cara, olha quem tá aí! Era a terceira cronista de jornal naquela sessão da tarde, e tinha escolhido uma poltrona na mesma fileira que a nossa. Sentou do meu lado e nos ofereceu pipoca orgânica. Rimos da coincidência.

Houve uma rápida discussão em tom avacalhado sobre se devíamos: 1) manter em segredo o programa adolescente quando voltássemos pra rua, a fim de não manchar a reputação de ninguém, ou 2) escrever cada um uma crônica a respeito —nenhum de nós tinha qualquer reputação a perder. Então nossa amiga tirou o smartphone da bolsa e fez uma selfie, que postou no Facebook (não tenho Facebook mas me contaram), encerrando a conversa.

Pedro Piccinini

O filme de Yeon Sang-ho era um pesadelo persecutório: milhares de zumbis perseguindo uns poucos sobreviventes dentro e fora de um trem pra Busan, a única cidade do país (a Coreia do Sul) ainda não arrasada pela epidemia. Algumas cenas são de tirar o fôlego, aqui e ali dá pra levar um susto, mas não é um filme de terror e sim de ação. Gosto de filmes de ação e adorei "Invasão Zumbi".

Depois, num bar da Augusta, listamos as diferenças entre zumbis e seus primos distantes, os vampiros. Concordamos que vampiros são mais sofisticados; não andam em bando; são freudianamente melancólicos e romanticamente sensuais —poetas do século 19 batalhando por virgens de sangue fresco. Zumbis, por sua vez, não têm individualidade (um zumbi é um zumbi é um zumbi); orientando-se por sons, parecem morcegos com catarata; não passam de máquinas de devorar carne humana. Chegamos à conclusão de que vampiros são mais interessantes, mas que de vez em quando só mesmo uma boa catarse com zumbis pra exorcizar o baixo-astral.

A noite caiu e nossa amiga foi encontrar o marido num restaurante; meu amigo e eu saímos atrás de um boteco barato. Acabamos no Pescador, a duas quadras de casa, onde o garçom ficou ofendido por eu ter perguntado pela milésima vez como ele se chamava. Cosimir! Claro: como esquecer um nome desses? Mas convenhamos: como lembrar?

Algumas horas mais tarde, já devidamente transformados, não em vampiros, quem me dera, mas em típicos zumbis do Baixo Augusta, foi cada um pro seu lado arrastando a promessa de na manhã seguinte escrever uma crônica sobre aquele dia engraçado e vagabundo. Com estas mal traçadas, cumpro a minha parte.


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