Folha de S. Paulo


Insônias

MULA
Você é uma mula, meu tio me dizia. Mas eu amava os cavalos. Os pangarés reais e os alazões imaginários. Os puros-sangues ingleses e os mustangues norte-americanos. Os mangas-largas pretos; os andaluzes brancos; os árabes, de fogo, no deserto. Era, no fundo, um elitista. Esse tempo passou. Hoje só amo as mulas. – As mulas ou nada.

ANDARILHOS
Os andarilhos, os vagabundos, os idiotas vão pelas beiras de estradas e sarjetas. Passarinhos creem que são árvores. Formigas sabem que são santos. Parecem ter atravessado sonhos com seus farrapos cinza-azuis.

Estou pensando num homem que conheci num abrigo municipal de São Paulo; um leitor de Dostoiévski com duas filhas que ele não via há seis anos; um sujeito que perdeu tudo, inclusive a memória, depois de um acidente de ônibus.

Os andarilhos, os vagabundos, os idiotas vão rente aos bueiros e às paredes sem reboco. Com seu laconismo seduzem os poetas. Com sua bondade amaldiçoam uma por uma as 500 aldeias do Mato Grosso do Sul.

SONÂMBULO
parcialmente roubado de Karl Ove Knausgård

De madrugada liga na delegacia pra dizer que está triste. Atira o edredom pela janela e morre de frio pelo resto da noite. Arrasta os móveis da sala; os filhos reclamam. Uma vez, depois de dormir no sofá do amigo de um amigo, mijou dentro do revisteiro, enquanto os outros dois bebiam e jogavam futebol de botão na cozinha. Já segurou a parede do quarto, achando que a casa fosse cair, e gritou pra mulher correr pro meio da rua. Foi surpreendido de pijama e mochila (cheia de batatas) no posto de gasolina mais próximo. Não se perdoa por ter dito a um colega de pescaria "você não passa de uma boneca arrombada". Acredita na manhã como um padeiro. E vive desconfiado como um criminoso.

HISTÓRIA
Alguns lugares são mágicos –pequenos apartamentos onde a luz entra de viés. Nas ruas não há mendigos nem crianças famintas, e cada trabalhador acredita que sua profissão é a mais importante de todas. (Como os poetas fingem que a poesia é a coisa mais importante do mundo.) Ao descer uma escada: música. Ao subir uma rampa: trilhos de trem. Há cajus pendurados nas portas, como colares havaianos, e túneis que ligam o sul e o nordeste como janelas de ventilação cruzada. Livros de história caem das prateleiras e ficam abertos no chão por muitos dias. Ninguém morde as galochas das mulheres. A polícia se veste de branco e só bate de leve, por amor.


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