Folha de S. Paulo


Imagens

Cadelinha

Ele voou de bicicleta, à altura de um poste, ao longo de 30 ou 40 metros. Não sei quanto tempo durou –eu não estava presente–, mas disseram que uma eternidade. Um dia desses, no bar do Serginho, mais de 20 anos depois, soube que foi por causa de uma menina, a Gil. Faz sentido, já que eles botaram a rampa de skate bem na frente do casarão onde ela morava. Quebrou várias costelas e ficou seis meses de cama, com gesso nas pernas e nos braços –pontos na cabeça, curativo no queixo, ferida no nariz. Durante meses os moleques contavam tudo em detalhes: a lenta subida até a igreja, empurrando a bike; os minutos imóvel, de mãos nos freios, hesitante; o sinal da cruz antes da partida; a descida alucinada, pedalando com força; o grito primitivo de vitória no instante em que o pneu tocou o half de madeirite (que a gente guardava no quintal do Lelê); a expressão de pavor que dominou o rosto do Cadelinha quando ele chegou lá no alto e planou, feito um herói, num arco mágico –que apenas imaginei mas nunca esqueci–; a queda no asfalto coberto pela areia de uma construção vizinha; o corpo do Cadelinha caindo no chão num baque horrível e, sua salvação, diziam, rolando em seguida pela rua; o silêncio que pesou entre os meninos; o Lelê correndo e ligando pro pai, que era médico e surgiu de dentro da ambulância e então todo mundo chorou; a bicicleta fodida resgatada só mais tarde do meio do mato do terreno baldio do Valentim.

O Frango pede pro Serginho uma porção de dobradinha. O Lelê enche os copos de cerveja, engasga com o cigarro e começa a gargalhar.

*

Ermitão
Morava do outro lado do rio, num sítio tomado pela mata ciliar. Sua casa era um barraco de madeira coberto de musgo. Diziam que vivia sozinho, sem rádio nem tevê, meio louco, que nem índio, comendo mandioca, magoado com as pessoas, falando com fantasmas. Era um ermitão, explicaram. Minha mãe nos proibiu de entrar nas terras dele. Meu pai contava uma história que acaba com meu avô atirando pro alto e o ermitão indo embora, furioso. Uma vez eu o vi do banco de trás do carro, na beira da estrada, antes da última ponte. E a lembrança é nítida demais pra que eu possa ter inventado qualquer coisa: os pés descalços, a barba cinza e comprida, o corpo magro e queimado de sol coberto por um saco de estopa, o chapéu de palha com furos, um cajado com uma ponta de ferro. "Olha o ermitão", meu pai disse baixinho. Olhei com todas as minhas forças. Eu queria olhar nos olhos do ermitão e ver como era. O que ele sabia, se tinha valido a pena. Mas o ermitão virou o rosto pro lado e continuou a caminhar.


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