Folha de S. Paulo


Impressionistas

VICTOR GÁSPARI

Violão

O homem do violão organiza as forças transversais da cozinha. Pilhas de pratos sujos e copos com restos de cerveja. Pessoas sentadas em bancos ao redor de uma mesa velha. Lata de lixo atochada de embalagens de pizza. Cinzeiros improvisados -latas de Coca rasgadas ao meio. Com sua música, o homem do violão faz coincidir o ar, o instante, a casa cor de rosa e o galo maluco da pintura naify. A mão direita da batida e a mão esquerda dos acordes -as cravelhas peroladas brilhando na luz. E uma voz que está e não está aqui. Quem precisa de religião pra acreditar que o mundo é maior do que parece? Da janela vejo um quintal que lembra tudo o que é bom. Fico em dúvida se é real esse cheiro de grama molhada. Mas o homem do violão vai embora, e cada coisa se recolhe ao seu eixo e depois desaba. A angústia volta a circular entre os zumbis. Alguém vai ter que limpar essa bagunça.

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Porteira

Estou sentado no palanque da porteira principal, perto da placa onde se lê "FAZENDA SANTA TERESINHA". Vejo a areia vermelha da estrada, os urubus no alto, os ipês-amarelos no horizonte. Quatro ou cinco cavalos pastam ao meu redor; são lindos e conheço todos pelo nome. Ouço de longe os barulhos da festa -gritos de bêbados e música de acordeom. Às vezes sinto cheiro de churrasco, mas não estou com fome; já comi dois sanduíches de cupim e tomei três refrigerantes. Minha irmã está pulando corda ao lado da casa do empregado. Os outros meninos estão lá embaixo, no rio. Estou sozinho de novo e sempre. Porque sou esquisito e chorão. Um idiota que não sabe brincar. Que prefere ficar cheirando o vento e imaginando coisas. O futuro amigo de García Lorca. O que ainda precisa encontrar as palavras pra tornar tudo isso real.

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Balcão

Tem a forma de uma ferradura. Até a ocupação alemã, durante a Segunda Guerra, era de zinco, como ainda hoje em boa parte dos bares franceses. Os nazistas o arrancaram a fim de transformar o metal em munição. Mas um pedaço, de 20 a 30 centímetros, não saiu do lugar. O dono não teve dúvida: mandou fazer o novo balcão, agora de mármore, de modo que a pedra encaixasse perfeitamente no resto do Zinco da Resistência.

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Pintor

O que eu queria mesmo era ser um pintor impressionista. A luz a grama a janela aberta o copo de absinto a garçonete de olhos borrões escuros sob as nuvens -o mundo apenas sensível as fronteiras instáveis tudo claro e em movimento- a água fosca o chapéu preto da mulher de lábios recém-pintados a varanda do barco o vento. Outras opções: trompetista de jazz; cavaquinista de choro; Caetano Veloso, Chico Buarque ou Bob Dylan; alguém sexualmente insaciável e constantemente satisfeito; namorada da Susan Sontag; velho cubano; surfista. Mas o que eu queria mesmo era ser um pintor impressionista.


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