Folha de S. Paulo


Sequestro

Victor Gáspari

O telefone do Vitor tocou quando eu tentava abrir uma garrafa de vinho, depois de constatar que não tinha sobrado uma única lata de cerveja no tanque com gelo. Era sábado, estávamos bebendo desde as duas na casa da minha namorada -coisa de três ou quatro casais-, e a essa altura já tinha anoitecido. O Vitor levantou, nervoso.

- O Nelsinho foi sequestrado. Tô indo lá ficar com a Ciça.

Ciça é a filha do Nelsinho. Tem 15 anos e lê romances de aventura. Perdeu a mãe há oito meses. Agora o pai era sequestrado.

O Picanha saiu atrás do Vitor. Peguei o vinho e corri pro elevador. Mas antes que a porta se fechasse minha namorada tirou a garrafa de mim.

- Tá louco? Isso é coisa séria!

Eu ia argumentar, mas não encontrei argumentos e fiquei quieto. Assim como eu, o Picanha e o Vitor estavam vestindo camisas nigerianas. Pura coincidência, que tinha rendido algumas piadas durante a tarde. De repente elas me pareceram alegres demais. Pensei em sugerir que a gente subisse e trocasse de roupa, mas achei melhor continuar calado.

A Ciça estava amparada por duas grandes amigas da mãe dela, a Lucília e a Renata. E não só: tinha umas 15 pessoas no apartamento. Entre elas a síndica, que contou o que sabia. Ela e a Ciça tinham ido tomar um suco na padaria da esquina (pelo jeito elas eram próximas) e na volta viram dois caras, um deles com um revólver, renderem o Nelsinho, que estacionava na frente do prédio.

Os policiais acreditavam se tratar de um sequestro relâmpago, pra sacar dinheiro em caixas eletrônicos. Em uma hora e meia no máximo eles liberavam o Nelsinho com uns reais a menos no bolso, disseram. Por outro lado, ninguém podia dar certeza de nada.

Ainda bêbado, eu vasculhava com o Vitor o apartamento à procura de qualquer documento onde pudesse haver dados bancários do Nelsinho, pra avisar o banco etc., quando, no armário do escritório, topamos com um embrulho dourado com uma etiqueta onde se lia "Vitor". Era um presente que a Helô, mãe da Ciça e melhor amiga do Vitor, tinha esquecido de lhe entregar. Foi um momento emocionante e nonsense.

Então o Nelsinho ligou e disse que estava tudo bem. A Ciça rejuvenesceu três décadas e voltou a ser a adolescente comum e especial que ela é. Todo mundo relaxou. A Renata acionou o disque cerveja:

- Manda 50 latas o mais rápido possível! - como se reivindicasse uma ambulância ou o Corpo de Bombeiros.

As cervejas chegaram enquanto o Nelsinho, na calçada, dava um depoimento pra polícia. Alguém acendeu um baseado. A Lucília botou um Jorge Ben Jor no som da cozinha e aquele bando de cinquentões malucos começou a dançar. Lembro da síndica, também dançando, pedir pra abaixarem um pouco o volume e ser vaiada e abraçada e beijada. Tenho a vaga memória de um cheiro bom de pizza.

Saímos de lá às duas e meia da manhã -com a sensação de que um pote de fel tinha sido entornado num buraco bem fundo. Sobre ele fizemos uma fogueira e esperamos. Levou muitas horas pra queimar até o fim.


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