Folha de S. Paulo


Pessoas

Victor Gáspari
 ilustração de Victor Gáspari para a coluna

VINGANÇA
Mora num sobrado cujos fundos dá pra uma churrascaria. Tem 30 anos e vive sozinha, com um gato tigrado. É domingo por volta das seis da tarde e a churrascaria já fechou. Normalmente não fecha tão cedo, mas hoje é a missa de sétimo dia da mãe de um dos sócios, dona Fernanda. A moradora do sobrado também se chama Fernanda. Está sentada a cavalo na mureta da lavanderia, fumando um Marlboro e acariciando o gato. De repente o isqueiro escapa da mão, ela tenta alcançá-lo, perde o equilíbrio e cai em cima do telhado da churrascaria. A brasilite se parte e ela dá de cara no chão. Apaga por uns segundos. Acorda sangrando, com dores no corpo inteiro. Não consegue levantar nem gritar alto. Pede socorro como pode. Ninguém escuta. Passa a noite com medo de morrer ou ficar paraplégica. De manhã um empregado vai abrir a porta, mas ouve barulho e pergunta quem é. Fernanda responde com voz de fantasma. O empregado, que é espírita, lembra da mãe do patrão e vai embora. Só três horas depois aparece outro empregado. Fernanda demora pra se recuperar. Quando fica boa, descobre o endereço do primeiro empregado e passa dias observando a casa. Enfim se decide: ovos. Compra uma bandeja. Espera a cidade dormir, para o carro no meio da rua (fica em dúvida se deve ou não desligar o motor e acha melhor deixar ligado), amarra um lenço sobre o rosto, desce jurando que nunca mais se mete em roubadas e atira ovo por ovo na porta do imbecil.

FEIRA
Quatro ou cinco vezes por semana, às seis e pouco da manhã, pego um táxi na esquina da casa da minha namorada e volto pro meu apartamento. Uma vez por mês ou a cada quinze dias, às sextas, perto das oito horas -grogue de sono e/ou de ressaca-, desço duas quadras antes, na esquina da feira, pra comer pastel e tomar caldo de cana. Como sempre um de carne, em pé, com vinagrete e molho de pimenta. Deixo metade do copo pra matar numa golada depois da última mordida.
Na barraca ao lado fica um amolador de facas. Gosto de observá-lo trabalhando; gosto de ver a lâmina faiscar; gosto até mesmo do barulho infernal que o esmeril produz. Mas se reparo melhor surpreendo seu rosto numa expressão de ódio. Parece um mágico arrependido de ser um farsante ou um vampiro de saco cheio da eternidade -e de algum modo misterioso parece descender do velho saltimbanco de Baudelaire, o "velho homem de letras que sobreviveu à geração a quem divertiu brilhantemente" e agora é vítima da ingratidão pública. Admiro esse senhor amargo e algumas vezes pensei em ouvir sua história. Mas tenho medo de conversar com ele e descobrir que é só mais um fascista.
Amo demais pastel com garapa pra correr esse risco.

COMILONA
Sonhava com uma piscina de sorvete. Como ondas em calda o açúcar cremoso. De coco queimado ou de pudim de leite. A grande compota sob o céu aberta. Depois de uma boa comida mineira. Mudando de cor conforme cai o sol. Na qual perderia o sentido dos ossos. Morreu aos 90 nascida em Uberlândia. Deixa muitos netos e um único sonho. -Ter uma imensa piscina de sorvete.


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